Ana Maria Mauad.
Universidade Federal Fluminense
"Primeiro
fomos mais ou menos lisboetas, com o mundanismo. Depois londrinos e parisienses,
agora somos new-yorquinos e hollywoodenses. O que chamava antigamente de
'sarau' passou a ser 'soirée' e hoje em dia é 'party' (...). No tempo do
binóculo floresceu nossa primeira linhagem de elegantes republicanos. O
asfalto, depois o automóvel fizeram o resto (...). Hoje poderíamos dizer: o Rio
'grows well' ou se acharem o adjetivo 'smart' também já foi vocábulo elegante
usado antes de 1914, poderão fazer uma tradução mais moderna - 'Rio grows
swell'." (Revista Rio Ilustrado, n° 170/171, agosto/setembro,
1953.)
Ao longo dos primeiros cinqüenta anos do século XX,
a Capital Federal sofreu intervenções cirúrgicas na sua forma urbana, resultado
de uma política urbanista que visava moldar a metrópole tropical, a imagem e
semelhança das cidades temperadas. Bulevares, substituíram vielas; cafés e
confeitarias, os freges e quiosques e o pacato cidadão deu lugar ao dandy
ou ao smart; todas as instâncias do viver em cidade foram sendo
adequadas a um novo padrão de comportamento.
Neste processo, as revistas ilustradas de críticas
de costumes, publicadas na cidade desde o início do século, tiveram um papel
fundamental ao possibilitarem a divulgação e assimilação rápida de imagens de
pessoas, objetos, lugares e eventos contribuindo, de forma decisiva, para a
criação deste novo padrão de sociabilidade.
O objetivo deste artigo é discutir o papel da
imagem fotográfica, veiculada pela imprensa ilustrada, na elaboração dos
códigos de representação social da classe dominante brasileira, na primeira
metade do século XX. Tal processo pautou-se na elaboração de um habitus
de classe, norteado pelas noções de privilégio e distinção1,
segundo o qual esta classe passou a identificar-se com a cultura burguesa
ocidental.
A estratégia de análise adotada divide-se em duas
partes: na primeira pretende-se situar historicamente tais publicações e seus
vínculos com a rede social dominante; na segunda parte, através da análise
histórico semiótica da imagens fotográficas das revistas, recuperamos os
quadros de representação social e os comportamentos subjancentes a estes.
Na mira do próprio olhar: as
revistas ilustradas no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX
CARETA, Fon-Fon, O Cruzeiro, Revista da Semana,
Kosmos, Malho, Avenida, Ilustração Brasileira, Rua do Ouvidor, Vida Doméstica,
Selecta, Eu Sei Tudo, Para Todos, Vamos Ler, Scena Muda, Cinearte, Beira Mar, entre outras compuseram o
perfil de uma época em que as imagens fotográficas tinham nas revistas ilustradas
o seu principal veículo de divulgação.
Um veículo que, através de uma composição editorial
adaptada ao seu próprio tempo e às tendências internacionais, criavam modas,
impunham comportamentos, assumindo a estética burguesa como a forma fiel do mundo
que representavam.
Janelas que se abriam para o mundo retratado na
foto, tais revistas contribuíram, em grande medida, para a generalização do
mito da verdade fotográfica. Ao mesmo tempo que, através de suas crônicas e
notas sociais, impunham valores, normas e criavam realidades, num processo que
transformaria a cidade em cenário e as frações da classe dominante, associadas
às agências do Estado às atividades urbanas, tais como setor de serviços,
comércio de exportação e ao capital financeiro, em seus atores principais.
Neste sentido, foram importante instrumento, deste grupo social, no empenho de
naturalizar suas representações através da imposição de uma determinada forma
de ver e reproduzir o mundo, sobre todas as outras possíveis.
Consumidas por quem era o seu conteúdo principal,
tais revistas, auxiliaram também a coesão interna do grupo em ascensão social.
Com efeito, veiculavam comportamentos tidos como necessários para se tornar um
bom cidadão, atuando como modelo a ser copiado e como exemplo a ser seguido. Em
sucessivas cenas, o Rio, Capital Federal, torna-se metrópole burguesa. Nesse
processo, um mundo de signos são produzidos na experiência coletiva, fornecendo
a tônica do tempo vivido. Signos que emergem no presente como possibilidade de
compreensão de uma certa versão de passado.
Quem cria esta versão são os cultuadores do
dandismo e beletrismo da Belle Époque, que se travestem de almofadinhas e
melindrosas, que bronzeiam a pele em Copacabana, tomam sorvete na Americana
depois da sessão vespertina do Odeon. São os que olham o Rio por cima, da
janela dos arranha-céus, e "fazem a avenida às 16:00 hs a caminho do five
o'clock tea na Colombo". São os que civilizam o Rio de Janeiro,
seguindo o modelo de exclusão social, derrubam o Morro do Castelo, o marco de
fundação da cidade, e constróem a avenida Presidente Vargas, nos moldes das
grandes avenidas norte-americanas. São os que andam na primeira classe dos
"bonds" da Jardim Botânico ou passeiam pela avenida Beira-Mar,
num Bayard-Clement último tipo. São os que jogam na bolsa de valores,
são acionistas da Light ou do Banco do Brasil, além dos negócios na indústria e
no comércio de importação e exportação. São os que no verão sobem para
Petrópolis, a imperial cidade serrana, fugindo do cheiro e das doenças, que em
sua concepção excludente, exalam do suor do povo. São os que votam na UDN, mas
algum dia festejaram a "Revolução de 30", juntamente com a primavera,
nas Batalhas de Flores da Praça da República2.
Cultuadores do ornato, do status, da aparência e do
que dirão. São "@@chics", "up-to-date" ou "tran-cham"3. Vivem no
Brasil com um olho na Europa e o outro nos Estados Unidos da América.
Burguesia, elite, grã-finagem, "jet-set", 300 de Gedeão,
"grand-monde", "high-life" são nomes
intercambiáveis que escondem, sob a aparência do bem-viver, códigos de
comportamentos e representações sociais. São nomes utilizados, ao longo do
século XX, para designar as frações de classe que disputaram o controle do
capital simbólico fundamental ao processo de instituição de uma hegemonia de
classe. Importantes agentes instituidores de um habitus de classe, que
discrimina uns e coopta outros, que hierarquiza os espaços da cidade,
dignificando-os ou rebaixando-os, que elege o consumo como norma de vida, que
dita modas e cria ilusões.
A capacidade das frações de classe dominante, em
exercer algum poder sobre os processos sociais de produção de sentido, estava
estreitamente ligada a elaboração de uma rede social, que vinculasse os
empresários da comunicação aos altos funcionários do governo, a tradicional
aristocracia agrária e setores emergentes do empresariado industrial, ou do
comércio exportador. Neste sentido, o controle dos meios técnicos de produção
cultural, permitia que a representações sociais de comportamento dos grupos
sociais vinculados a rede, fosse disseminada para o conjunto da sociedade, com
força de uma norma incontestável.
No interior de tais redes sociais, os donos das
revistas ilustradas, bem todos os intelectuais a elas associados, detinham o
controle de um grande capital simbólico, que os habilitavam a participar
intensamente da vida política do país. Vale ressaltar, portanto a necessidade
de tais agentes, como empresários da comunicação, em atualizar seus veículos
não só para manutenção como também para a ampliação de sua audiência,
garantindo assim seu lugar na dinâmica social.
Portanto, na primeira metade do século XX, as revistas
ilustradas sofreram importantes transformações, muito mais de forma do que de
conteúdo. Adaptando-s às mudanças políticas às influências internacionais e ao
mercado consumidor que, ao longo deste período, cresce e se diversifica, afinal
o leitor da FON-FON ou da Careta, de 1908, poderia ser até o mesmo em
1950, mas com certeza dividiria as suas páginas com seus filhos e netos, frutos
de um outro tempo, mas pertencentes a mesma classe social. Daí a manutenção de
determinados conteúdos de classe que, simplesmente ao longo do tempo, se
adaptara às novas tendências. Entre o "dandy" e o
"self-made-man" existe uma diferença de forma mas a substância, para
a sociedade carioca, é a mesma.
Em linhas gerais, este longo período da história
das publicações ilustradas de críticas de costumes, que circunscreve a primeira
metade do século XX, pode ser dividido em dois sub-períodos, delimitados por
transformações de ordem técnica que influenciaram a forma de apresentação
dessas revistas4.
O primeiro período se inicia em 1900 com a
introdução de fotografias na REVISTA DA SEMANA, o único periódico ilustrado com
fotos até então, e se prolonga até 1928, quando foi lançada a revista O
Cruzeiro, um marco na história do jornalismo brasileiro, tanto por
introduzir uma linha editorial de influência, marcadamente, norte-americana,
como pelo aumento significativo no uso de fotos.
Na primeira fase editorial, o tom das publicações
variava do crítico e cômico ao refinado e artístico, circunscrevendo o universo
mental da elite carioca em todas as suas possibilidades. A tendência crítica e
cômica pode ser exemplificada nos editoriais de lançamento das revistas FON-FON
e CARETA.
A FON-FON se lançava como "semanário alegre,
político, crítico e esfuziante, noticiário avariado telegrafia sem arame e
crônica epidêmica" cujo único objetivo era "fazer rir, alegrar a tua
boa alma carinhosa (...) com o comentário leve das coisas da atualidade (...).
Para os graves problemas da vida, para a mascarada política, para a sisudez
conselheiral das finanças e da intrincada complicação dos princípios sociais,
cá temos a resposta própria: aperta-se a sirene...FON-FON!" (Fon-Fon,
15/4/1907).
A revista Careta, por sua vez, seguia o
mesmo tom de pilhéria, propondo em seu editorial, "um programa vasto e
sedutor" para o público "apreciador das sessões galantes do
jornalismo smart" (CARETA, 6/6/1908). Dentro desta mesma linha editorial,
situavam-se a REVISTA DA SEMANA e o MALHO, esta última foi lançada em 1902 e
especializou-se em crítica política e caricaturas.
A tendência, mais refinada e artística, teve como
representantes a ILUSTRAÇÃO BRASILEIRA e a KOSMOS. Em 1904 surgiu o primeiro
número da KOSMOS, uma revista nos moldes modernos dos semanários
internacionais, apresentando, portanto, uma publicação bem cuidada de
acabamento primoroso. é época de seu lançamento a revista KOSMOS foi descrita
da seguinte maneira: "um primoroso álbum de nossas belezas e primores
artísticos, propagando o seu conhecimento a outros pontos do país e do
estrangeiro" (NOSSO SÉCULO, 1980, v.I, p.220). No seu conteúdo constavam
manifestações artísticas e literárias, crônicas e reportagens sobre eventos
sociais da elite endinheirada da cidade do Rio de Janeiro. Colaboravam nesta
revista: Arthur Azevedo, Gonzaga Duque, Capistrano de Abreu, e Euclides da
Cunha.
O segundo período se inicia com o lançamento da
revista O Cruzeiro e se prolonga, em termos de linha editorial, até a
década de 1960, com a introdução, entre outras modificações, da cor nas fotos
de revista.
Além das modificações, propriamente técnicas,
constata-se a partir dos anos 60 uma reconfiguração no campo das comunicações,
este assume um caráter mais tecnocrático, diferente dos anos anteriores onde o
dono das empresas era considerado um capitão de indústrias, influindo
diretamente tanto nas organização de suas empresas, quanto na política
nacional.
Os anos que circunscrevem o período de 30 a 60, na
história das publicações ilustradas, diferencia-se da anterior, tanto pela
introdução de novas técnicas de impressão, tais como a rotogravura, quanto por
uma redefinição no perfil do mercado editorial, ávidos por informações
atualizadas. Tais fatores foram definitivos para a mudança no padrão estético e
informativo das revistas ilustradas. Enquanto o primeiro momento foi fortemente
marcado pela presença de textos ficcionais, crônicas e por fotografias pequenas
e independentes do texto escrito, o segundo enfatiza a notícia, a interpretação
dos fatos nacionais e internacionais e as fotografias, em grande formato, a
estas associadas.
É importante enfatizar a diferença entre estes dois
períodos, como forma de caracterizar as mudanças inscritas na própria
transformação da audiência das revistas, dentre as quais se pode destacar: a
ampliação dos estratos médios da sociedade carioca, crescimento urbano e
valorização de padrões comportamentais associados aos meios de comunicação,
passando a mídia a ser um elemento importante na formação do gosto.
A revista O Cruzeiro foi lançada no dia
10/11/1928, com uma tiragem inicial de 50.000 exemplares, cifra bastante
significativa para a época. Em seu editorial de lançamento, evidenciou-se o
perfil moderno e inovador que OS DIÁRIOS ASSOCIADOS, empresa pertencente a
Assis Chateaubriand e responsçvel pela publicação de O Cruzeiro, O
JORNAL e o DIÁRIO DA NOITE, queria traçar para si mesmo:
"Depomos
nas mãos do leitor a mais moderna revista brasileira. Nossas irmãs mais velhas
nasceram por entre as demolições do Rio Colonial, através dos escombros a
civilização traçou a reta da avenida Rio Branco: uma reta entre o passado e o
futuro. O Cruzeiro encontrará ao nascer o arranha-céu, a radiotelephonia
e o correio aéreo. O esboço de um mundo novo no novo mundo (...).A revista é um
compêndio da vida (...) revela a sua expressão educativa e estética, por isso a
imagem é um elemento preponderante. Uma revista deve ser como o espelho leal
onde se reflete a vida, seus aspectos edificantes, atraentes e
instrutivos" (O Cruzeiro, 10/11/1928).
Neste contexto, ao mesmo tempo que a revista O
Cruzeiro se inseria no conjunto das chamadas publicações
"frívolas", advogava para si o direito, quase missionário de ser o
espelho fiel da vida. Tal postura inscreve-se num contexto cultural, no qual a
imprensa exerce uma influência decisiva não somente na interpretação, mas
também, na própria elaboração dos fatos sociais. Sendo assim, a imprensa
segundo a concepção desta revista, ficaria encarregada da nobre missão de, no
caso dos jornais, julgar, e no das revistas, depurar os fatos da vida para que
o leitor se educasse de forma correta.
Esta postura tem como premissa básica a idéia de
que o que está escrito é a própria verdade. Tal concordância seria reforçada
pela utilização maciça de imagens. Isto porque, a imagem, diferentemente do
texto escrito chega de forma mais direta e objetiva é compreensão, com menos
espaço para dúvidas, pois o observador confia nas imagens técnicas tanto quanto
confia nos seus próprios olhos.
Com o intuito de reafirmar o papel predominante da
imagem sobre o texto, a empresa dos DIÁRIOS ASSOCIADOS investiria, três anos
depois do lançamento da revista, na modernização dos equipamentos de impressão,
buscando uma melhoria na qualidade da imagem fotográfica. Em breve as páginas
de O Cruzeiro, ganharam cor, a princípio, exclusivamente em ilustrações
e caricaturas e, bem mais tarde, em fotografias.
Em sua primeira fase editorial, que se prolongaria
até o final da década de 1930, a revista O Cruzeiro, apesar de em muitos
pontos assemelhar-s às outras revistas ilustradas contemporâneas, especialmente
à REVISTA DA SEMANA, apresentou um caráter mais cosmopolita, obtido através da
utilização dos serviços das agências de notícias internacionais, ampliando o
seu universo temático. Um exemplo disso, foi o aparecimento de sessões
exclusivas, como a chamada: "Pelas Cinco Partes do Mundo".
Resultado do empenho pessoal do dono da empresa Os
Diários Associados, Assis Chateaubriand, a O Cruzeiro, surge no mercado
editorial de publicações semanais, com o real objetivo de inovar. A O
Cruzeiro de Chateaubriand era uma revista com papel da melhor qualidade,
repleta de fotografias, com os melhores articulistas e escritores do Brasil e
do exterior, compondo seu quadro de intelectuais, além de assinar todos os
serviços internacionais de artigos e fotografias. Foi lançada nas principais
cidades e capitais do Brasil, com tiragem inicial de 50.000 exemplares, uma
cifra considerável para o mercado editorial, dos anos vinte, acostumados a
números mais modestos que iam, no máximo, a 27 mil exemplares.
Todo este investimento foi feito, por
Chateaubriand, não ter competidores a sua altura e para ampliar o estoque de
capital político à sua disposição. Ambos os movimentos reforçaram influêndeste
empresário, tanto na rede social, composta pelos setores dominantes, quanto no
aparelho de Estado.
No entanto, foi a partir da década de 1940 que a O
Cruzeiro incorporaria o padrão de qualidade das publicações internacionais,
incluindo, desde então, nas suas primeiras páginas um detalhado expediente,
onde se pode constatar a especialização dos serviços da revista em vários
departamentos, nos moldes das famosas revistas LIFE, LOOK, PARIS MATCH, entre
outras. Por esta época, O Cruzeiro já contava com uma tiragem de 120.000
exemplares.
Dentre os repórteres que faziam parte do quadro
regular da revista constavam: David Nasser, Edmar Morel, Rocha Pita, Nelly
Dutra, etc. Como colaboradores eventuais: José Lins do Rego, Rachel de Queiroz
e Millôr Fernandez. Cabe ressaltar que foi O Cruzeiro a primeira publicação
a conceder o crédito das fotografias publicadas, contando inclusive com um
departamento e equipe fotográfica que reunia fotógrafos tais como: Jean Manzon,
Edgar Medina, Salomão Sciclar, Lutero Avila, Peter Scheir, Flávio Damm, José
Medeiros entre outros. Estes encarregados, juntamente com os fotógrafos de
introduzir uma linguagem fotográfica: o fotojornalismo.
Uma nova linguagem imbuída de um caráter
fundamentalmente didático e de um controle rígido da correlação texto/imagem,
por parte da equipe editorial. O fato é literalmente construído, seguindo esta
nova tendência as fotografias deixaram de ser simplesmente dispostas nas
páginas das revistas, para serem, com diferentes tamanhos e formas,
deliberadamente arranjadas rompendo com o esquema ilustrativo tradicional.
Com tais mudanças a revista O Cruzeiro,
promoveria uma reformulação geral no padrão das publicações ilustradas, que
tiveram de reordenar toda sua linha editorial para poder concorrer com o novo
padrão estético imposto por O Cruzeiro. algumas publicações que
tradicionalmente tinham uma boa entrada no mercado, tais como: Careta,
FON-FON e REVISTA DA SEMANA, conseguiram se reformular e sobreviver.
Ver, imaginar, criar: os quadros
de representação social da classe dominante nas revistas ilustradas cariocas
Para proceder a recuperação dos quadros das
representações sociais de comportamento da burguesia urbana, elaborado pela
imprensa ilustrada carioca, na primeira metade do século XX, através da imagem
fotográfica, organizou-se um "corpus", ou seja, uma série fotográfica
extensa e homogênea.
Tal série foi composta por 867 fotografias
selecionadas das revistas O Cruzeiro e Careta, em anos-chaves nos
quais as revistas sofreram modificações na forma da expressão e na forma do
conteúdo5
Neste sentido destacou-se respectivamente, 1908,
1914, 1922, 1928, 1935, 1942, 1949 para revista Careta e 1928, 1934,
1943, 1950, para a revista O Cruzeiro. Em cada ano foram escolhidos três
números relativos, cada um, a uma época do ano: janeiro/fevereiro, junho/julho
e dezembro, com o intuito de cobrir os principais eventos da cidade, tais como:
festas de fim de ano, carnaval e as aberturas de temporada - verão e inverno.
Vale lembrar que a revista Careta e O Cruzeiro foram escolhidas
devido a constância na periodicidade, volume de fotografias, condições de
acesso e reprodução das imagens e por serem, cada qual, um exemplo típico de
dois momentos das publicações ilustradas, anteriormente assinalados.
O segundo passo foi a escolha de um eixo de análise
que desse conta do caráter não-verbal da linguagem fotográfica. Optou-se pela
avaliação de como a noção de espaço foi codificada, na mensagem fotográfica,
elaborada pelas revistas ilustradas. Tal escolha justifica-se tanto pelo papel
determinante que a noção de espaço ocupa nas linguagens visuais, gestuais,
etc., como nos critérios a partir dos quais o imaginário urbano é construído,
tomando-se sempre como referência básica a existência de um "topos".
Desta forma, a noção de espaço codifica tanto a expressão da linguagem
fotográfica como o conteúdo, a esta subjacente, nos semanários ilustrados da
primeira metade do século XX.
Entretanto, cabe ressaltar que tal noção não é
homogênea, seu desdobramento é balizado pelas unidades culturais que estruturam
a mensagem fotográfica e que podem ser organizadas, para efeito de análise, em
categorias espaciais, tais como: espaço fotográfico, espaço geográfico, espaço
do objeto, espaço da figuração e espaço da vivência (Mauad, 1996).
Cada uma delas é analisada, separadamente, no
entanto, na dinâmica de produção de sentido social, entrecruzam-se. Em tal
processo, balizam a elaboração dos quadros de representação social, norteadores
das formas de ser e agir da burguesia urbana.
As opções estéticas, as formas de consumo, os
lugares da cidade que deveriam ser freqüentados, como signo de distinção e
pertencimento social, enfim, toda uma codificação em torno da noção de 'bom
gosto' (identificado com o gosto burguês), era estabelecida pelas imagens
fotográficas e padrão gráfico das revistas ilustradas.
A seguir serão avaliadas as categorias espaciais,
acima apresentadas, nas fotografias de ambas as publicações - Careta e O
Cruzeiro - buscando-se, com isso, recuperar os comportamentos e os quadros
de representação social, correspondentes a burguesia urbana6
em ascensão.
Flagrantes e instântaneos
A composição do espaço fotográfico, está
intimamente relacionada ao tipo de aparelhagem utilizada. A máquina fotográfica
limitará as possibilidades de enquadramento, tamanho, profundidade de campo e
nitidez da foto.
As imagens fotográficas das revistas ilustradas
sofreram uma variação de padrão correspondente é própria evolução da técnica
fotográfica, e do acesso que as redações das revistas tinham a este progresso
tecnológico. Paralelamente a estas variáveis, mais um fator interfere na
composição do espaço fotográfico das revistas ilustradas, qual seja: a relação
da imagem com o texto escrito.
Neste sentido, as variáveis na composição do espaço
fotográfico, nas revistas ilustradas foram as seguintes:
- Tamanho
da foto: variou entre pequeno, médio e grande. As fotos pequenas tomaram,
no máximo 1/8 do espaço total da página, média, cerca de 1/4 e a grande,
mais de 1/2. A opção por expressar os valores métricos em frações,
deveu-se ao fato de que as fotografias não possuíam um padrão métrico
constante, como, por exemplo, as fotografias que integram um álbum de
família.
- Formato
da foto: variou entre o quadrilátero, que inclui o formato retangular e o
quadrado, e a circunferência, que inclui o formato oval e circular, bem
como outras formas semelhantes, como no caso de foto dentro de letras ou
emolduradas.
- Suporte
da foto: caracteriza-se pela forma da relação entre o texto escrito e a
linguagem fotográfica. Quanto tipo de relação foram estabelecidos e um
dado foi levantado:
1ª relação: reportagem
fotográfica com título, texto e legenda.
2ª relação: reportagem fotográfica com título e legenda.
3ª relação: fotografia avulsa com título e legenda.
4ª relação: fotografia avulsa somente com título.
O dado levantado é a existência
de parceria entre fotógrafo e repórter, ambos assinando seu trabalho, texto
escrito e visual. Recurso nas reportagens fotojornalísticas a partir de fins da
década de 1930, estabelecendo uma nova relação entre linguagem escrita e
visual.
- Tipo
da foto: posada ou instantânea, para se avaliar o grau de naturalidade das
fotos e se detectar a existência de comportamentos emergentes.
- Enquadramento:
item que reuniu o sentido, a direção a distribuição dos planos, o objetivo
central e o arranjo das fotos coletivas, como forma de avaliar a
hierarquização do espaço fotográfico e possíveis seqüências de
significados.
- Nitidez:
item que inclui o foco, a impressão visual e a iluminação. A avaliação
apurada de tais itens, ao longo do tempo, permite recuperar as mudanças
estéticas na forma de expressão da fotografia de imprensa, enfatizando-se,
ou não o mito da verdade fotográfica.
A revista Careta apresentou o seguinte
padrão de espaço fotográfico ao longo dos 50 anos cobertos pela análise:
Tamanho
|
40%
pequenas; 30% grandes; 30% médias
|
Formato
|
Retangulares
(99%)
|
Suporte
|
Reportagem
fotográfica com título e legenda (44% do total)
|
Tipo
|
68%
posada e 32% instantâneos
|
Enquadramento
|
Sentido
horizontal (66%); direção central (57%); 2 planos distintos (80%); grupo
misto como objeto central dispostos eqüitativamente em semicírculo ou linha
reta (quase não há fotos com pessoas espalhadas)
|
Nitidez
|
Linhas
definidas (90%), com todos os planos no foco (90%); sem sombras e com
contraste (90%)
|
O espaço fotográfico da revista O Cruzeiro
configurou-se da seguinte maneira:
Tamanho
|
58%
pequenas; 26% médias e 14% grandes.
|
Formato
|
Retangulares
(99%)
|
Suporte
|
Reportagem
fotográfica com título, texto e legenda (72% do total sendo que cerca de 50%
foram realizadas nos moldes do fotojornalismo)
|
Tipo
|
60%
fotos posadas contra 40% de instantâneos
|
Enquadramento
|
Sentido
vertical (76%); direção central (56%); 2 planos distintos com objeto central
concentrado no 1° plano devido a opção vertical (80%); mulher como objeto
central (27%).
|
Nitidez
|
Linhas
definidas (90%); objeto central no foco (74%); sem sombras e com contraste
(90%)
|
Como pode ser constatado pelas tabelas acima
existiam poucas diferenças entre as duas revistas. A Careta apresentava
imagens com contornos bem definidos, planos distintos, equilíbrio de elementos
e homogeneidade de organização. Tais opções reafirmam o pressuposto de que, o
que era exibido na foto, mantinha uma relação direta e objetiva com a própria
realidade.
Já a O Cruzeiro, foi mais ousada,
principalmente numa avaliação de cada período separadamente, quando
constata-se, a influência de outros tipos de imagem, como o cinema, nas opções
estéticas. No conjunto dos anos analisados, as imagens caracterizaram-se pela
concentração no plano central, homogeneidade, pouca profundidade, definição de
linhas e contornos e pela sexualização do espaço figurativo, com a escolha da
mulher como objeto central da maioria das fotos7.
Tal padrão, ao contrário, do anterior expressa uma carga maior de subjetividade
própria as expressões artísticas. Tal fato deveu-se principalmente a existência
de um grande número de reportagens fotográficas, nos moldes do fotojornalismo,
cujas fotos eram identificadas e o trabalho do fotógrafo valorizado na sua
dimensão criativa, muito mais do que informativa.
Por outro lado, a opção pelo fotojornalismo, criou
uma ancoragem da imagem para com o texto escrito. Sendo estas interpretadas a
partir das idéias escritas, limitando, assim, a autonomia do texto visual em
relação ao escrito. Ao mesmo tempo enfatizava o caráter didático que a imprensa
assumiu a partir da década de 1940.
Geografia da diferença
A cidade, suas avenidas, praias, contorno dos
morros ou a baía - um espaço próximo e vizinho compõe uma determinada imagem do
Rio de Janeiro que, por predominar silencias as demais.
O Brasil, suas regiões e paisagens, cria uma imagem
que expõe tanto a face de riqueza e desenvolvimento quanto a o lado pitoresco e
exótico de um país tõo cheio de diversidade.
O estrangeiro surge nas páginas ilustradas através
das cidades-capitais e seus modos de vida peculiares. Imagens que indicam a
ampliação dos contatos internacionais, o mundo torna-se, como que por mágica,
ao alcance dos olhos. Tudo isso incita a curiosidade e a adoção de modismos e
comportamentos emergentes.
O espaço engendrado pela mensagem fotográfica das
revistas ilustradas, tem como característica básica a variedade. Entretanto,
mesmo dentro desta variedade, existe uma hierarquia de temáticas que são
associadas a determinados espaço s
No conjunto as imagens analisadas nas revistas Careta
e O Cruzeiro o espaço geográfico foi dividido em três grandes blocos
regionais, cuja proporção de incidência na imagem foi a seguinte:
Região
|
Revista
CARETA
|
Revista
O Cruzeiro
|
RJ -
zona Sul
|
36, 5%
|
24, 5%
|
RJ -
Zona Norte
|
7%
|
1%
|
RJ -
centro
|
24%
|
15%
|
RJ -
Subúrbios
|
1%
|
4%
|
Estado
do RJ
|
2%
|
9, 5%
|
Fora do
Rio, no Brasil
|
10%
|
8%
|
Fora do
Brasil
|
15%
|
32%
|
RJ (não
identificada)
|
4, 5%
|
6%
|
É importante ressaltar que, cada uma destas regiões
manteve uma relação com o eixo principal - a cidade do Rio de Janeiro - ora
reforçando-lhe seu caráter cosmopolita, ora atribuindo-lhe determinadas funções
que podiam ser turísticas, políticas ou propriamente de palco para o desfile de
personagens da classe em ascensão, a burguesia.
O blocos regionais, por sua vez, foram,
subdivididos em diferentes lugares, compondo uma paisagem formada por clubes
com seus salões luxuosos e áreas externas, estádios de esporte, hotéis, praias,
avenidas e ruas, edifícios públicos, escolas, teatros, estúdios, ambientes
domésticos, selvas, etc.
Duas regiões se destacam do conjunto: na revista Careta,
a região RJ - Zona Sul e na revista O Cruzeiro, o estrangeiro. Emblemas
de um estilo de vida que estava se impondo. Comecemos pela zona sul, da cidade
do Rio de Janeiro, e sua identificação com o habitus da classe
dominante.
A zona sul de Rio abarca os bairros litorâneos
localizados entre o mar e os morros. São mais distantes do centro de negócios
e, até os anos 50, eram fundamentalmente destinados a moradia e lazer das
camadas mais ricas da população urbana. Portanto, era uma área onde se podia
facilmente retratar a vida, os hábitos, as maneiras de vestir, os passeios,
eventos, etc., de uma classe que cada vez mais se identificava com os valores e
comportamentos da burguesia ocidental.
Os lugares de maior incidência, nas fotos da zona
sul, da Careta, são: os parques, avenidas, ruas, clubes, praias,
estádios de futebol de clubes, os hotéis e as veredas tropicais a beira mar.
Assim, os lugares fotografados compunham uma mensagem que reafirmava a vocação
de estes espaço s ao lazer e a diversão de setores privilegiados da população.
A freqüência em tais lugares, como não era aberta ao público, atuava para o seu
usuário como um signo de distinção social.
Una tendência evidenciada nas fotografias de
escolas, onde o tema escolhido, não foi o das salas de aula, mas as festas de
formatura e de fins de ano; no mesmo estilo, os prédios públicos,
principalmente, o palácio do governo, localizado no bairro de Laranjeiras (zona
sul), compareceram somente nas fotos de festividades, geralmente, Natal, quando
se distribuíam, nos jardins do palácio, presentes aos pobres. Mais uma vez reafirma-se
a idéia de privilégio na forma de representação dos espaço s freqüentados pelos
grupos dominantes. Em relação as escolas, os ritos de passagem evidenciavam o
aprimoramento cultural e intelectual dos filhos e netos dos donos do poder,
paralelamente, a caridade garantia a manutenção da distancia social entre os
grupos privilegiados e os desfavorecidos, agentes e pacientes do ato caridoso.
Neste sentido, a zona sul da cidade sempre foi
associada a códigos de comportamentos relacionados aos grupos dominantes,
emblemas de sua distinção social, tais como: banhos de mar na pria da Urca,
defronte ao Cassino em grandes tendas; bailes de formatura do Clube Fluminense,
com seus lustres e espelhos, criando uma ambiência de exclusividade e luxo;
lanches na varanda do hotel Copacabana Palace, tendo como ornamentação a bela
avenida Atlântica, reformada e cheia de automóveis importados, entre outros
exemplos.
N'O Cruzeiro, a maioria das fotografias analisadas são de
localidades estrangeiras, destacadamente a Europa Ocidental e Hollywood. Da
Europa Ocidental chegam notícias das guerras e dos grandes fatos que marcaram a
história contemporânea da humanidade. No entanto era com Hollywood que o
carioca (como era e todavia são chamados os habitantes da cidade do Rio de Janeiro),
se reciclava e assimilava o padrão burguês de comportamento como uma norma de
atitude.
Ao longo década de 1920, os Estados Unidos da
América, cresceram economicamente, despontando como a terra do dinheiro fácil,
de homens vigorosos e da ilusão consumista. Uma sociedade afluente, moldada sob
medida para uma classe dominante carente de um projeto cultural próprio, tal
como a burguesia carioca se apresentava. O automóvel americano e as fitas de
Hollywood exportaram o 'american way of life'.
No caso do Rio de Janeiro, capital federal, a
indústria cinematográfica, através da Companhia Cinematográfica Brasileira,
consegue intervir no panorama urbano com a construção da Cinelândia. Um espaço,
no centro de negóciosda cidade, totalmente reformado para abrigar as novas
salas de cinema. Ir ao cinema havia se transformado no ato de consumo de um
produto: o filme, daí a necessidade de locais adequados para consumi-los.
Ingressos caros, mas conforto, higiene e luxo eram
oferecidos, a todos os freqüentadores, pelos quatro cinemas inaugurados na
Cinelándia, entre 1925 e 1928. Capitólio, Odeon, Palácio e Glória, com suas
estréias espetaculares, produziram um novo espaço de aparência na geografia da
cidade.
A revista O Cruzeiro lança em 1928, ano da
inauguração do último cinema do complexo, uma sessão denominada Cinelándia. Aí
eram tratados as 'coisas do cinema', numa composição de fotografias e
comentários sobre a vida pessoal dos artistas, cenas de filme, a qualidade da
audiência nos cinemas, etc.
Tal tendência alastrou-se por outras publicações
ilustradas que, nos anos subsequentes inauguram sessões exclusivamente sobre
Hollywood, sinônimo de cinema, dentre as quais destacam-se: 'galeria dos
artistas da tela' (FON-FON); 'Novidades de Hollywood' (Careta);
'Cine-revista' (O Cruzeiro), etc. Além das revistas especializadas em
cinema, tais como: SELECTA; CINEARTE e PARA TODOS.
O cinema, incentivado por tais publicações, passou
a fazer parte do cotidiano social carioca reordenando a geografia de diversões,
ao mesmo tempo que impunha novos códigos de comportamento.
A imagem proveniente de Hollywood influenciava no
tipo da indumentária, nos cortes de cabelo, na maquiagem do rosto, na forma de
beijar8, bem como na redefinição dos locais de lazer
da burguesia carioca, e na estruturação de um 'star-system' nacional
utilizando-se das artistas do rádio. Nos anos quarenta a política da
boa-vizinhança encetada pelos EUA, para os países da América Latina,
redefiniria a estratégia de sedução Hollywoodiana. Carmem Miranda e o
personagem de Walt Disney, Zé Carioca, tornaram-se ícones a partir dos quais
deveríamos nos modelar. Uma imagem imposta redefinidora da nossa própria
auto-imagem.
Neste momento, não só o Brasil, mas a sociedade
latino-americana como um todo, sofrem um processo de internacionalização. Em
tal processo as referências culturais de caráter tipicamente burguês, já
consolidadas nas sociedades do hemisfério norte, mesclam-se aos valores
tradicionais de cada formação social, gerando uma cultura híbrida. A marca
fundamental, deste novo padrão cultural, foi a valorização do popular, na sua
dimensão de mercadoria de consumo e a manutenção dos códigos comportamentais
pautados na exclusão social.
Nesse contexto, uma nova sociabilidade urbana, se
forma com base nos códigos de representação social que valorizam o samba, o
malandro, a boêmia, enfim elementos de uma cultura popular, apropriados e
reelaborados pelo ótica do estrangeiro.
Portanto o popular passa a ser uma
mercadoria consumida através da organização do chamado "star-system",
composto pelas estrelas e astros dos filmes de Hollywood, das chanchadas da
Atlântida9,
dos programas e novelas da rádio Nacional e pelas fotografias das revistas, que
veiculavam a imagem de todos os agentes destas atividades, como símbolos da
nossa brasilidade.
O reverso desta imagem é a exclusão, de fato, de
setores populares das áreas valorizadas da cidade, da diferenciação de lazer de
elite e do povo, do agravamento das diferenças sociais e da perda de
referências culturais proprimamente nacionais.
Por outro lado, a ênfase dada ao espaço
estrangeiro, pela revista O Cruzeiro, explica-se por ser esta uma
revista mais cosmopolita e criada a partir do novo padrão empresarial da
imprensa moderna. Em compasso com esta tendência, mantinham contato direto com
as agências internacionais de notícias, tais como: Schert de Berlim, ABC de
Lisboa e o Consórcio Internacional de Imprensa de Paris, além de manter um
correspondente especial em Hollywood.
Nestas imagens há ausências. O leste Europeu e o
Oriente, surgem como somente como paisagem exótica. No entanto, a América
Latina, os bairros pobres da cidade e do Brasil, são apagados da imagem
dominante como uma realidade inexistente. Equiparados à condição de periferia
na configuração da geopolítica ocidental burguesa.
Ambas as publicações seguem uma tendência
semelhante, salvo as ênfases acima apresentadas. O Cruzeiro marca sua
diferenciação do conjunto de revistas ilustradas, investindo no aspecto
cosmopolita de Rio de Janeiro, Capital Federal, enquanto, a Careta
manteve sua tradição de revista de crítica de costumes, tipicamente carioca,
elevando as imagens da zona sul ao padrão ideal de representação.
Enquanto a O Cruzeiro opõe a cidade a um
outro espaço: Rio x Mundo, buscando sua identificação, a Careta
complementa a cidade com este espaço estranho, criando uma nova identificação:
Rio = Mundo.
Vele complementar tal avaliação pela dimensão
política da cidade, centro de decisões ligada ao gerenciamento dos negócios
públicos e privados. A cidade-capital, surge nas fotografia como referência
paradigmática de Brasil. Ao longo de cinqüenta anos de imagem o Rio passa de
Paris dos trópicos, símbolo da modernidade sustentada por uma elite agrária
dominante, à metrópole sintetizada nos arranha-céus da Av. Presidente Vargas,
inaugurada em 1945. Em todos estes momentos atualiza sua função de centro de
poder, local onde se decide o futuro do país e de onde o Brasil se projeta para
o mundo civilizado. Uma estratégia das classes dominantes, em manter a unidade
nacional, através da identificação do país com sua capital.
Emblemas do gosto burguês
Os objetos, numa coleção de fotografias de revista,
são atributos da mensagem fotográfica que fornecem a dimensão dos lugares
retratados e dos eventos a estes relacionados.
Para efeito de análise dividiu-se os objetos
retratados em três tipos: objetos-pessoais, objetos-interiores e
objetos-exteriores. Na mensagem fotográfica transmitida pelas revistas
ilustradas, tais objetos forma apresentados tanto como dignos do padrão de vida
dominante, como objetos úteis para a realização de determinadas tarefas.
entretanto, em ambos os casos, o objeto investe a imagem de determinados
significados próprios ao espaço e tempo da representação.
Os objetos-pessoais estão associados à
representação do indivíduo: seu estilo de vida e sua posição na hierarquia
social. Os objetos-interiores caracterizam o tipo de paisagem que se está
retratando: privada ou pública; muitas vezes, como no caso das cenas de filmes,
a transposição de objetos-interiores para espaço s públicos, como estúdios de
cinema, visam criar, justamente, uma ambiência privada. O terceiro tipo, os
objetos-exteriores, caracterizam o meio retratado, podem também, quando
associado às pessoas, indicar o estilo de vida e o padrão social, no qual elas
se enquadram.
É, especialmente, no âmbito dos objetos que a
mensagem fotográfica das revistas ilustradas entra na intimidade do leitor,
moldando-lhe os gostos e educando-lhe o olhar, interferindo, tanto na sua
representação pessoal, quanto na criação de novos códigos de comportamento para
uso coletivo.
Tal processo ocorre porque, estes três tipos de
objetos, que fazem parte do cotidiano dos receptores das mensagens
fotográficas, ao serem recortados da realidade vivida e transpostos para a
realidade da imagem, adquirem uma função-signo de modelo, na qual estão
investidos de um poder de persuasão, até então não dimensionado. A combinação
de redes de significado compondo objeto + figuração + vivência, aderem a
representação indicando formas corretas de se comportar em diferentes ocasiões.
No conjunto das fotografias analisadas
evidenciou-se um estilo de vida baseado no consumo supérfluo do luxo e da
abundância de objetos, marca registrada do novo cidadão urbano. Em 70% das
fotos os objetos estão em segundo plano atuando como elemento de reconhecimento
do ambiente retratado, em geral urbano (66%) e elegante, tais como: clubes
(26%), ruas e avenidas da moda (24%) e hotéis (14%). Em termos de
objetos-pessoais, em 50% das fotos analisadas a indumentária escolhida incluiu
trajes como: gala, passeio completo, esporte fino e esportivo. Tal preocupação
pelo traje adequado para a hora certa denota a existência de um código do
bem-vestir pautado na utilização de objetos-pessoais tanto para a
caracterização da situação que se esta vivenciando, como elemento de distinção
social.
Os donos do olhar: hierarquia de
gênero e idade na representação social da burguesia
Compreendendo o espaço da figuração, engendrado
pela mensagem fotográfica, das revistas ilustradas, a partir de três oposições
básicas: grupo/indivíduo; homem/mulher e adulto/criança, desvenda-se o seguinte
mundo
Um mundo no qual os habitantes possuíam lugares
determinados no espaço da representação. Nesta a imagem feminina estava
associada à frivolidade e aos papéis de espectadora e modelo exemplar, e a
masculina à ação, inteligência e ao poder. No trabalho de relacionar a
figuração ao evento retratado, tal distinção evidenciou-se.
Os homens foram relacionado às temáticas que
incluem: os eventos sociais, militares, políticos e esportivos, além das
curiosidades nacionais e internacionais, item que contêm uma grande variedade
de temas que poderiam incluir desde os acontecimentos cotidianos da cidade -
tipo desastre de avião ou automóveis, especialidades culinárias dos cozinheiros
dos principais hotéis e clubes da cidade, reportagens sobre recursos naturais,
etc. - até as últimas novidades do século XX.
Por outro lado, a imagem feminina foi associada à
vida dos artistas e de pessoas famosas do high society internacional e
principalmente à moda. Sobre a moda havia uma distinção entre as novidades
internacionais e a sua utilização no âmbito nacional. É justamente através da
imagem da moda nacional que a especialização entre o espaço feminino e
masculino evidencia-se mais claramente, posto que, tal temática está
representada nas fotografias do Jockey Club, onde as mulheres são retratadas
como o público elegante, destacando-se a sua indumentária bem cuidada e o seu
estilo elegante. Até mesmo quando a figura masculina incluída neste âmbito
aparece em segundo plano e em pequeno número. Assim, em tais representações, o
espaço masculino asssocia-se ao esporte e a ação e o feminino à moda e ao papel
de assistente.
No entanto, foi também no espaço feminino que se
incluíram imagens das condições de vida das classes populares, veiculando uma
representação dicotômica da sociedade que vem a confirmar os papéis socialmente
impostos.
A mulher das classes populares é fotografada, via
de regra, trabalhando em serviços braçais, tais como: lavar roupa, cozinhar,
cuidar de criança, etc., ou em situações de dificuldade e precariedade. A ela
são associadas roupas simples e à sua casa poucos objetos interiores, além de
estar localizada nos subúrbios desassistidos pelas autoridades.
Nesse sentido, o espaço feminino para as classes
populares é um espaço periférico, que acaba por confundir-se ao coletivo, não
recebendo com isso, a mesma valorização das mulheres da classe dominante, que
surgiam na imagem sempre com boa aparência, em lugares exclusivos e
protagonizando situações de lazer ou de romance
Na representação criada pela imagem fotográfica o
universo infantil é um simulacro do adulto, no qual todas as potencialidades
para um cidadão realizado são apresentadas como condição natural e inerentes ao
grupo social do qual provêm.
Em 10% das fotos analisadas as crianças aparecem
sozinhas, em 14% estão acompanhadas de adultos, o restante são fotos
exclusivamente de adultos. Diante de tal proporção investiu-se na descoberta
dos temas e do tipo de indumentária que foram associado às crianças, para
dimensionar-se quais representações sociais que estavam atreladas ao universo
infantil.
Basicamente, os eventos sociais, os banhos de mar e
os passeios foram os temas que obtiveram a maior incidência de crianças sem a
companhia de adultos (21%). Neste caso os eventos sociais são formados por
festas de encerramento do ano letivo e por bailes infantis em ocasiões
especiais - o exemplo deste tipo de evento são as fotos da Exposição
Internacional de 1922, que contou com o equivalente infantil para o baile comemorativo
do centenário da Independência.
Acompanhada de adultos as crianças são retratadas
nos eventos sociais, militares, políticos, esportivos e nos passeios e banhos
de mar (18%). Desta vez os eventos sociais, temática de maior incidência (7%),
compõem-se por festas de caridade com a presença de menores carentes.
Com efeito, mesmo quando as crianças são retratadas
independentemente dos adultos mantêm-se a eles atreladas, quer através da
temática - geralmente equivalentes infantis para eventos adultos - ou pela
relação que com os adultos estabelece, no caso da ação caridosa a marca da
dependência fica evidenciada.
No espaço infantil a sociedade reaparece segmentada
em dois grupos sociais distintos: um que, socialmente despossuído, depende do
universo adulto através da caridade; outro que compartilha da fruição dos
lugares exclusivos e do consumo dos signos de luxo e riqueza e que se prepara
para assumir os papeis já estabelecidos na dinâmica social. A própria
indumentária reafirma a existência de tais papéis, tendo em vista que, do
conjunto de fotos de crianças acompanhadas ou não de adultos, em cerca de 36%
estão fantasiadas, 18% trajam passeio-completo e 16, 5% o esportivo. De acordo
com tal proporção é a fantasia a escolha principal para compor o espaço
infantil, dentre as quis se destacam: príncipes, nobres, militares,
esportistas, bailarinas, etc. Imagens que associam as crianças a representações
sociais tipicamente adultas e de um certo universo de adultos.
Distinção social e vivência de classe na sociedade
carioca da primeira metade do século XX
Em 1950, no Rio de Janeiro, florescia um mundo
moderno de metrópole burguesa definitivamente constituída. Um espaço bem
marcado, com suas fronteiras delimitadas pela 'gare' da estação de Trens
Central do Brasil e pela orla marítima. Nesse intermédio, viviam o Rio moderno
e promissor, sociedade afluente de signos de distinção. Para além da Central do
Brasil, os subúrbios eram o reverso desta imagem, era onde "@@a vida
tem horizontes exíguos e as aspirações e os sonhos encontram seus limites nos
trilhos da estrada de ferro, sendo o rádio a única porta de evasão"10.
Ao longo da primeira metade do século XX, das
representações sociais de comportamento engendradas pela imagem fotográfica,
das revistas ilustradas, surge uma cidade onde os espaço s são redimensionados
para atividades as quais não foram programados, em função de uma vivência de
classe. Neste sentido, o lazer é associado ao trabalho no exercício do poder, a
medida que os grandes negócios empresariais ou as importantes questões
nacionais eram resolvidos em banquetes e festas.
Os espaço s adquiriam uma nova dignidade por terem
sido fotografados como ambientes para eventos exclusivos, ou simplesmente,
porque neles se deixaram fotografar, pessoas ostentando objetos que
caracterizassem um determinado estilo de vida associado ao luxo e à
exclusividade.
Assim a coesão de classe e a construção de uma
Capital cosmopolita e moderna, plenamente preenchida por valores de tipo
burguês, se processa tanto através da vivência e do consumo de um mesmo
universo de signos, como pela produção de uma imagem onde o "locus"
social aparece como dado inerente a própria história
Neste sentido, o pobre é retratado como
naturalmente pobre e o rico como naturalmente rico, posto que, em nenhum
momento são representados fora do código dominante que associa um determinado
espaço geográfico a certos objetos e pessoas, orientando com isso a própria
representação dos eventos/vivência dos grupos sociais. Assim, a naturalização
do processo histórico, através da hegemonia da imagem fotográfica dominante,
atuou como elemento estruturante das representações sociais de comportamento,
que se instituíram ao longo da primeira metade do século XX, moldando os gostos
e escolhas dos cidadãos que se tornavam consumidores.
As revistas ilustradas, compuseram o catálogo de
valores, emblemas, comportamentos e representações sociais, através do qual a
burguesia se imaginou e se fez reconhecer, criando a utopia de um mundo digno,
porque civilizado e empreendedor, e livre, porque acessível e transparente aos
olhos de todos.
A imagem publitorna-se o ícone, por excelência, de
um modo de vida vitorioso, que prescinde da própria realização para existir,
bastando para tanto que as imagens fotográficas o reflitam.
São cinqüenta anos de imagens que revelam o
processo social de um grupo que, aos poucos, adquire consciência de classe,
tanto pelo papel conquistado no âmbito da produção, quanto pelos quadros de
representação social e programações de comportamento elaboradas neste processo.
Tais referências culturais foram estendidas para o conjunto da sociedade como
sendo a forma correta de ser e agir, relegando todos os comportamentos
alternativos ao âmbito da marginalidade.
NOTAS
- Segundo Pierre Bourdieu, o conceito de habitus
pode ser compreendido como "um conjunto de esquemas implantados desde
desde a primeira educação familiar, e constantemente repostos e
reatualizados ao longo da trajetória social restante, que demarcam os
limites à consciência possível de ser mobilizada pelos grupos e/ou
classes, sendo assim responsáveis, em última instância, pelo campo de
sentido que operam as relações de força" ( Micelli, Sérgio. Economia
das trocas simbólicas, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1982, p.XLII). É
interessante notar, a adequação do conceito de habitus ao de
representação, para os estudos dos processos de controle da produção de
sentido social por parte de grupos/classes. Neste sentido, não só a imagem
fotográfica, mas também o próprio ato de fotografar, se deixar fotografar
e consumir imagens fotográficas, podem ser considerados importantes
integrantes do habitus social.
- Este
parágrafo sintetiza informações sobre comportamentos e lugares
freqüentados por frações de classe dominante que, disputavam a hegemonia
cultural, na primeira metade do século XX.
- Termos
utilizados em diferentes momentos, na primeira metade do século XX, para
adjetivar a classe dominante, detentora dos meios técnicos de produção
cultural e do capital simbólico a disposição para a hegemonia de classe.
- Para
uma avaliação detalhada das publicações ilustradas e sua relação com a
formação de comportamentos burgueses no Brasil, ver: Mauad, Ana Maria
(1990) 1 v. 465 pp. ilust. 2 v. 200pp. ilust.
- Os
anos-chave foram definidos a partir de uma análise rigorosa da totalidade
dos anos publicados. Ao longo dos anos as revistas apresentaram mudanças
na linha editorial caracterizadas por alguns fatores tais como: diminuição
do texto escrito em relação a foto, ampliação do número de fotos, mudança
na identidade visual da revista, anúncio de inovações técnicas pelo
editor, mudanças na equipe de colaboradores, etc. Enfim mudanças ligadas
ao própio veículo, mas também considerou-se anos importantes em termos de
marcos históricos relacionados a história da cidade/país e a história
mundial, tais como: as grandes guerras mundiais, exposições nacionais e
internacionais, reformas urbanas, eleições, etc. Via de regra o que
vigorou foi um entrcruzamento destes dois critérios.
- A
historiografia brasileira sobre o período estudado, não é consensual no
que diz respeito a utilização do conceito de classe burguesa, para este
período da história do Brasil. Noções como camadas médias urbanas, classes
médias, frações dominadas da classe dominante, são correlativos para a
noção de burguesia urbana tal como a utilizamos aqui. A opção pelo
conceito de burguesia urbana, deveu-se principalmente ao objetivo central
do estudo, qual seja: avaliar como, dentro do contexto de inserção do
Brasil na lógica do capitalismo internacional, os costumes e
comportamentos no espaço das cidades, notadamente na Capital,
transformaram-se. Tal transformação tomou como referência os códigos de
comportamento dos paises do hemisfério norte, primeiro a França e a
Inglaterra e, depois da 2ª G.G, os EUA, estes, sem dúvida alguma, pautados
em valores e normas burgueses. Não cabe aqui discutir a base econômica da
classe dominante brasileira do período eminentemente agrária, mas,
absenteísta por natureza e cosmopolita por verniz.
- Numa
análise numérica da inidencia homem/mulher como objeto central das fotos
de O Cruzeiro, padrão encontrado foi o seguinte:
|
1°
plano
|
2°
plano
|
plano
central
|
figura
masculina
|
18%
|
8%
|
17, 5%
|
figura
feminina
|
18%
|
6, 5%
|
27%
|
- Com
efeito, a tendência geral é para a distribuição equilibrada entre o espaço
feminino e masculino, já que ambos incidem igualmente no primeiro plano.
No entanto, há que se ressaltar a maior incidência da figura masculina em
segundo plano e da feminina em plano central revelando-se aí uma maior
valorização da imagem feminina na composição fotográfica da revista O
Cruzeiro. Tal fato explica-se tanto pela introdução de sessões
especializadas em modas, como pela valorização do corpo feminino, a partir
da década de 1940, associada a uma mudança em termos de representações
culturais do popular e do nacional nos meios de comunicação.
- "Técnicas
do beijo", reportagem publicada, com fotos de artistas se beijando,
pela revista O Cruzeiro, em 1934.
- Estúdio
cinematográfico responsável por uma significativa produção de filmes
nacionais, pautados na estética, norte-americana, durante as décadas de 40
e 50.
- Peregrino
Jr. IN: Nosso Século, SP: Ed. Abril Cultural, Vol. IV, p.154.