Curso de Informática Avançada

domingo, 27 de abril de 2014

O olho da história: fotojornalismo e história contemporânea

Ana Maria Mauad
Os grandes e não tão grandes fatos que marcaram a história do século XX foram registrados pela câmera fotográfica de repórteres atentos ao calor dos acontecimentos. Qual a natureza desses registros? Como fica a narrativa dos acontecimentos elaborada pela linguagem fotográfica? Quais são as imagens que compõem a memória coletiva do século passado? É possível falar de uma história feita de imagens? Qual o papel do fotógrafo como criador de uma narrativa visual? E da imprensa como uma ponte entre os acontecimentos e sua interpretação? Estas são as questões fundamentais que orientam as reflexões que se seguem.
A fotografia entrou para os jornais diários em 1904, com a publicação de uma foto no jornal inglês, Daily Mirror. Um atraso de mais de vinte anos em relação às revistas ilustradas, que já publicavam fotografias desde a década de 1880 (Souza, 2000. Freund, 1989). No entanto a entrada da fotografia no periodismo diário traduz uma mudança significativa na forma do público se relacionar com a informação, através da valorização do que é visto. O aumento da demanda por imagens promoveu o estabelecimento da profissão do fotógrafo de imprensa, procurada por muitos ao ponto da revista Collier's, em 1913 afirmar: "hoje em dia é o fotógrafo que escreve a história. O jornalista só coloca o rótulo" (Lacayo e Russel, 1990, p.31. Cit. Souza 2000, p. 70).
Uma afirmação bastante exagerada, tendo em vista o fato de que somente a partir dos anos 1930 o conceito de fotorreportagem estaria plenamente desenvolvido. Nas primeiras décadas do século, as fotografias eram dispostas nas revistas de modo a traduzir em imagens um fato, sem muito tratamento de edição. Em geral eram publicadas todas do mesmo tamanho, com planos amplos e enquadramento central, o que impossibilitava uma dinâmica de leitura, como também não estabelecia a hierarquia da informação visual (Souza, 2000, p. 70).
Foi somente no contexto de ebulição cultural da Alemanha dos anos 1920, que as publicações ilustradas, principalmente as revistas, ganhariam um novo perfil, marcado tanto pela estreita relação entre palavra e imagem, na construção da narrativa dos acontecimentos, quanto pelo posicionamento do fotógrafo como testemunha desapercebida dos acontecimentos. Eric Salomon (1928-1933) foi o pioneiro na conquista do ideal da testemunha ocular que fotografa sem ser notado. No prefácio de seu livro Contemporâneos célebres fotografados em momentos inesperados, publicado em 1931, ele enunciou as qualidades do fotojornalista, dentre elas as principais seriam uma paciência infinita e astúcia para driblar todos os obstáculos na conquista da imagem certa para sintetizar o acontecimento tratado.
Solomon foi responsável pela fundação da primeira agência de fotógrafos, em 1930, a Dephot, preocupado em garantir a autoria e os direitos das imagens produzidas. Questão que se prolonga até os dias de hoje, nos meios de fotografia de imprensa. Em todo caso, foi através de iniciativas independentes como essas que a profissão do fotógrafo de imprensa foi ganhando autonomia e reconhecimento. Associado à Solomon em sua agência estavam: Felix H. Man, além de André Kertesz e Brassai.
A narrativa através de imagem passaria a ser ainda mais valorizada quando surge o editor de fotografias. O editor, figura que surgiu nos anos 1930, originou-se do processo de especialização de funções na imprensa e passou a ser o encarregado de dar um certo sentido às notícias, articulando adequadamente palavras e imagens, através do título, da legenda e de breves textos que acompanhavam as fotografias. A teleologia narrativa das reportagens fotográficas tinha como objetivo capturar a atenção do leitor, ao mesmo tempo em que o instruía na maneira adequada de ler a imagem. Stefan Lorant, que já havia trabalhado em diversas revistas alemãs foi o pioneiro na elaboração do conceito de fotorreportagem (Costa, 1993, p.82).
Lorant rejeitava a foto encenada, ele, ao invés, vai fomentar a fotorreportagem em profundidade sobre um único tema. Nessas reportagens, geralmente apresentadas ao longo de várias páginas, fotografias detalhadas são agrupadas em torno da foto central. Esta tinha por missão sintetizar os elementos de uma 'estória' que Lorant pedia aos fotojornalistas que contassem em imagens. Uma fotorreportagem, segundo tal concepção, deveria ter um começo e um fim, definidos pelo lugar, tempo e a ação (Souza, 2000, p.80).
Com a ascensão do nazismo os fotógrafos deixaram a Alemanha, Salomom é morto em Auschswitz, alguns deles, dentre os quais o húngaro Andrei Friemann, que assume o pseudônimo de Capa, foram para França onde, em 1947, fundaram a agência Magun, outros, como Lorant, se exilam na Inglaterra, assumindo a direção de importantes periódicos, tais como Weekly Iillustrated. Posteriormente, com o acirramento do conflito, seguiram para os EUA, trabalhando junto às revistas Life, Look e Time (1922).
O período entre guerras foi também o de crescimento do fotojornalismo norte-americano. Destacando-se, nesse contexto, o aparecimento dos grandes magazines de variedades como a Life (1936) e a Look (1937). A primeira edição da revista Life saiu em 11 de novembro de 1936, com tiragem de 466 mil exemplares e com uma estrutura empresarial que reunia, em 17 seções, renomados jornalistas e fotógrafos da sensibilidade de um Eugene Smith.
Criada no ambiente do New Deal, a Life foi projetada para dar sinais de esperança ao consumidor, tratando, em geral de assuntos que interessavam às pessoas comuns. Objetivava ser uma revista familiar, que não editava temas chocantes, identificando-se ideologicamente com: a ética cristã, a democracia paternalista, a esperança num futuro melhor com esforço de todos, trabalho e talento recompensados, apologia da ciência, exotismo, sensacionalismo e emotividade temperada por um falso humanismo (Luiz Espada, cit. Por Souza, 2000, p.107).
A geração de fotógrafos que se formaram, a partir da década de 1930, atuou num momento no qual a imprensa era o meio por excelência para se ter acesso ao mundo e aos acontecimentos. Essa geração de fotógrafos exerceu uma forte influência na forma como a história passou a ser contada. As concerned photographs, fotografias de forte apelo social, produzidas a partir do estreito contato com a diversidade social, conformaram o gênero também denominado de documentação social. Projetos associados à rubrica de documentação social são bastante variados, mas em geral se associam a uma proposta institucional, oficial ou não.
Um famoso exemplo de fotografia engajada num projeto oficial foi o da FSA (Farm Security Administration), uma agência de fomento governamental, dirigida por Roy Stryker, através da qual a vida rural e urbana foi registrada (e devassada) pelos mais renomados fotógrafos do período: Dorothea Langue, Margareth Bourke-White, Russel-lee, Walker Evans,etc.
Por outro lado, o aumento constante da busca por imagens conduziu à multiplicação de agências de imprensa em todos os países. Elas empregavam fotógrafos ou estabeleciam contratos com fotógrafos independentes. Em geral as agências ficavam com grosso do lucro obtido com a venda das fotos e o fotógrafo, responsável por todos os riscos, não tinha controle sobre essa venda.
Esse foi um dos motivos pelos quais, em 1947, Robert Capa, juntamente com outros fotógrafos, fundou a Agência Magnum. Para esse grupo, a fotografia não era apenas um meio para ganhar dinheiro. Aspiravam a exprimir, através da imagem, os seus próprios sentimentos e idéias de sua época. Rejeitavam a montagem e valorizavam o flagrante e o efeito de realidade suscitado pelas tomadas não posadas, como marca de distinção de seu estilo fotográfico. Em geral os participantes dessa agência eram adeptos da Leica, uma câmera fotográfica de pequeno porte que prescindia de flash para as suas tomada, valorizando com isso o efeito de realidade.
Em ambos os exemplos, o que se percebe é a construção de uma comunidade de imagens em torno de determinados temas, acontecimentos, pessoas, ou lugares, podendo inclusive cruzar tais categorias. Tais imagens corroboram, em grande medida, o processo de construção de identidades sociais raciais, políticas, étnicas, nacionais, etc, ao longo do século XX.
No Brasil
O mercado editoral brasileiro, mesmo incipiente, já existia desde o século XIX, com publicações das mais diversas (Sussekind, 1987) Em 1900 é publicada a Revista da Semana, primeiro periódico ilustrado com fotografias. Desde então os títulos se multiplicaram como também o investimento nesse tipo de publicação. Um exemplo disso é o aparecimento, em 1928, da revista O Cruzeiro, um marco na história das publicações ilustradas (Mauad, 1999).
A partir da década de 1940, O Cruzeiro reformulou o padrão técnico e estético das revistas ilustradas apresentando-se em grande formato, melhor definição gráfica, reportagens internacionais elaboradas a partir dos contatos com as agências de imprensa do exterior e, em termos estritamente técnicos, a introdução da rotogravura, permitindo uma associação mais precisa entre texto e imagem. Toda essa modernização era patrocinada pelos Diários Associados, empresa de Assis Chateaubriand, que passa a investir fortemente na ampliação do mercado editorial de publicações periódicas.
A nova tendência inaugurada por O Cruzeiro, encetou uma reformulação geral nas publicações já existentes obrigando-as a modernizar a estética de sua comunicação. Fon-Fon, Careta, Revista da Semana, periódicos tradicionais adequaram-se ao novo padrão de representação, que associava texto e imagem na elaboração de uma nova forma de fotografar: o fotojornalismo.
Assumindo o modelo internacional, sob forte influência da revista Life, o fotojornalismo de O Cruzeiro criou uma escola que tinha entre os seus princípios básicos a concepção do papel do fotógrafo como 'testemunha ocular' associada à idéia de que a imagem fotográfica podia elaborar uma narrativa sobre os fatos. No entanto, quando os acontecimentos não ajudavam, encenava-se a história.
O texto escrito acompanhava a imagem como apoio, que no mais das vezes, amplifiava o caráter ideológico da mensagem fotográfica. Daí as reportagens serem sempre feitas por um jornalista, responsável pelo texto escrito, e por um repórter fotográfico, encarregado das imagens, ambos trabalhando conjuntamente. No entanto, somente a partir dos anos 40 o crédito fotográfico será atribuído com regularidade nas páginas de revistas e jornais.
Uma dupla em especial ajudou a consolidar o estilo da fotorreportagem no Brasil: David Nasser e Jean Manzon, a primeira dupla do fotojornalismo brasileiro, protagonistas de histórias onde encenavam a própria história (Carvalho, 2002, Costa, 1996). Além de Manzon, outros fotógrafos contribuíram para a consolidação da memória fotográfica do Brasil contemporâneo, tais como: José Medeiros, Flávio Damm, Luiz Pinto, Eugenio Silva, Indalécio Wanderley, Erno Schneider, Alberto Jacob, entre outros que definiram uma geração do fotojornalismo brasileiro.
A fotorreportagem marcou época na imprensa ilustrada respondendo à demanda de seu tempo. Um tempo onde a cultura se internacionalizava e a história acelerava seu ritmo no descompasso das guerras e conflitos sociais. Em compasso com a narrativa de imagens, os acontecimentos recuperaram a sua força de representação, a ponto de se poder contar a história contemporânea através dessas imagens.
No entanto, para explicar essa história, o historiador não pode bancar o ingênuo. Há que se tomar a imagem do acontecimento como objeto da história, como documento/monumento, como verdade e mentira. Indo de encontro à memória construída sobre os eventos, porque a história a desmonta, a desnaturaliza apontando todo o caráter de construção, comprometimento e subjetividade.
Ana Maria Mauad é professora adjunta do Departamento de História da UFF e pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF.
Este texto faz parte da pesquisa "Através da imagem: História e memória do fotojornalismo no Brasil contemporâneo" financiada pelo CNPq, 2002-2004.

Referências bibliográficas
Carvalho, Luiz Maklouf. Cobras Criadas, São Paulo: Editora Senac, 2ª ed., 2002.
Costa, H. "Da fotografia de imprensa ao fotojornalismo", In: Acervo: revista do Arquivo Nacional, vol.6, n° 1-2, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993, pp. 55-74.
Costa, H. "Palco de uma história desejada: o retrato do Brasil por Jean Manzon", In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico, Iphan, n° 27, 1996, pp. 139-159.
Freund, Gisele. Fotografia e sociedade. Lisboa: Vega, 1989.
Mauad, A.Mª. "Janelas que se abrem para o mundo: fotografia de imprensa e distinção social, no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX", In: Estúdios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe, vol. 10, n° 2, Tel Aviv, 1999.
Sousa, Jorge Pedro. Uma história crítica do fotojornalismo ocidental. Chapecó: Grifos, Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2000.
Sussekind, Flora. O Brasil não é longe daqui, SP: Companhia das Letras, 1987.


Janelas que se abrem para o mundo: fotografia de imprensa e distinção social no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX

Ana Maria Mauad.
Universidade Federal Fluminense
"Primeiro fomos mais ou menos lisboetas, com o mundanismo. Depois londrinos e parisienses, agora somos new-yorquinos e hollywoodenses. O que chamava antigamente de 'sarau' passou a ser 'soirée' e hoje em dia é 'party' (...). No tempo do binóculo floresceu nossa primeira linhagem de elegantes republicanos. O asfalto, depois o automóvel fizeram o resto (...). Hoje poderíamos dizer: o Rio 'grows well' ou se acharem o adjetivo 'smart' também já foi vocábulo elegante usado antes de 1914, poderão fazer uma tradução mais moderna - 'Rio grows swell'." (Revista Rio Ilustrado, n° 170/171, agosto/setembro, 1953.)
Ao longo dos primeiros cinqüenta anos do século XX, a Capital Federal sofreu intervenções cirúrgicas na sua forma urbana, resultado de uma política urbanista que visava moldar a metrópole tropical, a imagem e semelhança das cidades temperadas. Bulevares, substituíram vielas; cafés e confeitarias, os freges e quiosques e o pacato cidadão deu lugar ao dandy ou ao smart; todas as instâncias do viver em cidade foram sendo adequadas a um novo padrão de comportamento.
Neste processo, as revistas ilustradas de críticas de costumes, publicadas na cidade desde o início do século, tiveram um papel fundamental ao possibilitarem a divulgação e assimilação rápida de imagens de pessoas, objetos, lugares e eventos contribuindo, de forma decisiva, para a criação deste novo padrão de sociabilidade.
O objetivo deste artigo é discutir o papel da imagem fotográfica, veiculada pela imprensa ilustrada, na elaboração dos códigos de representação social da classe dominante brasileira, na primeira metade do século XX. Tal processo pautou-se na elaboração de um habitus de classe, norteado pelas noções de privilégio e distinção1, segundo o qual esta classe passou a identificar-se com a cultura burguesa ocidental.
A estratégia de análise adotada divide-se em duas partes: na primeira pretende-se situar historicamente tais publicações e seus vínculos com a rede social dominante; na segunda parte, através da análise histórico semiótica da imagens fotográficas das revistas, recuperamos os quadros de representação social e os comportamentos subjancentes a estes.
Na mira do próprio olhar: as revistas ilustradas no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX
CARETA, Fon-Fon, O Cruzeiro, Revista da Semana, Kosmos, Malho, Avenida, Ilustração Brasileira, Rua do Ouvidor, Vida Doméstica, Selecta, Eu Sei Tudo, Para Todos, Vamos Ler, Scena Muda, Cinearte, Beira Mar, entre outras compuseram o perfil de uma época em que as imagens fotográficas tinham nas revistas ilustradas o seu principal veículo de divulgação.
Um veículo que, através de uma composição editorial adaptada ao seu próprio tempo e às tendências internacionais, criavam modas, impunham comportamentos, assumindo a estética burguesa como a forma fiel do mundo que representavam.
Janelas que se abriam para o mundo retratado na foto, tais revistas contribuíram, em grande medida, para a generalização do mito da verdade fotográfica. Ao mesmo tempo que, através de suas crônicas e notas sociais, impunham valores, normas e criavam realidades, num processo que transformaria a cidade em cenário e as frações da classe dominante, associadas às agências do Estado às atividades urbanas, tais como setor de serviços, comércio de exportação e ao capital financeiro, em seus atores principais. Neste sentido, foram importante instrumento, deste grupo social, no empenho de naturalizar suas representações através da imposição de uma determinada forma de ver e reproduzir o mundo, sobre todas as outras possíveis.
Consumidas por quem era o seu conteúdo principal, tais revistas, auxiliaram também a coesão interna do grupo em ascensão social. Com efeito, veiculavam comportamentos tidos como necessários para se tornar um bom cidadão, atuando como modelo a ser copiado e como exemplo a ser seguido. Em sucessivas cenas, o Rio, Capital Federal, torna-se metrópole burguesa. Nesse processo, um mundo de signos são produzidos na experiência coletiva, fornecendo a tônica do tempo vivido. Signos que emergem no presente como possibilidade de compreensão de uma certa versão de passado.
Quem cria esta versão são os cultuadores do dandismo e beletrismo da Belle Époque, que se travestem de almofadinhas e melindrosas, que bronzeiam a pele em Copacabana, tomam sorvete na Americana depois da sessão vespertina do Odeon. São os que olham o Rio por cima, da janela dos arranha-céus, e "fazem a avenida às 16:00 hs a caminho do five o'clock tea na Colombo". São os que civilizam o Rio de Janeiro, seguindo o modelo de exclusão social, derrubam o Morro do Castelo, o marco de fundação da cidade, e constróem a avenida Presidente Vargas, nos moldes das grandes avenidas norte-americanas. São os que andam na primeira classe dos "bonds" da Jardim Botânico ou passeiam pela avenida Beira-Mar, num Bayard-Clement último tipo. São os que jogam na bolsa de valores, são acionistas da Light ou do Banco do Brasil, além dos negócios na indústria e no comércio de importação e exportação. São os que no verão sobem para Petrópolis, a imperial cidade serrana, fugindo do cheiro e das doenças, que em sua concepção excludente, exalam do suor do povo. São os que votam na UDN, mas algum dia festejaram a "Revolução de 30", juntamente com a primavera, nas Batalhas de Flores da Praça da República2.
Cultuadores do ornato, do status, da aparência e do que dirão. São "@@chics", "up-to-date" ou "tran-cham"3. Vivem no Brasil com um olho na Europa e o outro nos Estados Unidos da América. Burguesia, elite, grã-finagem, "jet-set", 300 de Gedeão, "grand-monde", "high-life" são nomes intercambiáveis que escondem, sob a aparência do bem-viver, códigos de comportamentos e representações sociais. São nomes utilizados, ao longo do século XX, para designar as frações de classe que disputaram o controle do capital simbólico fundamental ao processo de instituição de uma hegemonia de classe. Importantes agentes instituidores de um habitus de classe, que discrimina uns e coopta outros, que hierarquiza os espaços da cidade, dignificando-os ou rebaixando-os, que elege o consumo como norma de vida, que dita modas e cria ilusões.
A capacidade das frações de classe dominante, em exercer algum poder sobre os processos sociais de produção de sentido, estava estreitamente ligada a elaboração de uma rede social, que vinculasse os empresários da comunicação aos altos funcionários do governo, a tradicional aristocracia agrária e setores emergentes do empresariado industrial, ou do comércio exportador. Neste sentido, o controle dos meios técnicos de produção cultural, permitia que a representações sociais de comportamento dos grupos sociais vinculados a rede, fosse disseminada para o conjunto da sociedade, com força de uma norma incontestável.
No interior de tais redes sociais, os donos das revistas ilustradas, bem todos os intelectuais a elas associados, detinham o controle de um grande capital simbólico, que os habilitavam a participar intensamente da vida política do país. Vale ressaltar, portanto a necessidade de tais agentes, como empresários da comunicação, em atualizar seus veículos não só para manutenção como também para a ampliação de sua audiência, garantindo assim seu lugar na dinâmica social.
Portanto, na primeira metade do século XX, as revistas ilustradas sofreram importantes transformações, muito mais de forma do que de conteúdo. Adaptando-s às mudanças políticas às influências internacionais e ao mercado consumidor que, ao longo deste período, cresce e se diversifica, afinal o leitor da FON-FON ou da Careta, de 1908, poderia ser até o mesmo em 1950, mas com certeza dividiria as suas páginas com seus filhos e netos, frutos de um outro tempo, mas pertencentes a mesma classe social. Daí a manutenção de determinados conteúdos de classe que, simplesmente ao longo do tempo, se adaptara às novas tendências. Entre o "dandy" e o "self-made-man" existe uma diferença de forma mas a substância, para a sociedade carioca, é a mesma.
Em linhas gerais, este longo período da história das publicações ilustradas de críticas de costumes, que circunscreve a primeira metade do século XX, pode ser dividido em dois sub-períodos, delimitados por transformações de ordem técnica que influenciaram a forma de apresentação dessas revistas4.
O primeiro período se inicia em 1900 com a introdução de fotografias na REVISTA DA SEMANA, o único periódico ilustrado com fotos até então, e se prolonga até 1928, quando foi lançada a revista O Cruzeiro, um marco na história do jornalismo brasileiro, tanto por introduzir uma linha editorial de influência, marcadamente, norte-americana, como pelo aumento significativo no uso de fotos.
Na primeira fase editorial, o tom das publicações variava do crítico e cômico ao refinado e artístico, circunscrevendo o universo mental da elite carioca em todas as suas possibilidades. A tendência crítica e cômica pode ser exemplificada nos editoriais de lançamento das revistas FON-FON e CARETA.
A FON-FON se lançava como "semanário alegre, político, crítico e esfuziante, noticiário avariado telegrafia sem arame e crônica epidêmica" cujo único objetivo era "fazer rir, alegrar a tua boa alma carinhosa (...) com o comentário leve das coisas da atualidade (...). Para os graves problemas da vida, para a mascarada política, para a sisudez conselheiral das finanças e da intrincada complicação dos princípios sociais, cá temos a resposta própria: aperta-se a sirene...FON-FON!" (Fon-Fon, 15/4/1907).
A revista Careta, por sua vez, seguia o mesmo tom de pilhéria, propondo em seu editorial, "um programa vasto e sedutor" para o público "apreciador das sessões galantes do jornalismo smart" (CARETA, 6/6/1908). Dentro desta mesma linha editorial, situavam-se a REVISTA DA SEMANA e o MALHO, esta última foi lançada em 1902 e especializou-se em crítica política e caricaturas.
A tendência, mais refinada e artística, teve como representantes a ILUSTRAÇÃO BRASILEIRA e a KOSMOS. Em 1904 surgiu o primeiro número da KOSMOS, uma revista nos moldes modernos dos semanários internacionais, apresentando, portanto, uma publicação bem cuidada de acabamento primoroso. é época de seu lançamento a revista KOSMOS foi descrita da seguinte maneira: "um primoroso álbum de nossas belezas e primores artísticos, propagando o seu conhecimento a outros pontos do país e do estrangeiro" (NOSSO SÉCULO, 1980, v.I, p.220). No seu conteúdo constavam manifestações artísticas e literárias, crônicas e reportagens sobre eventos sociais da elite endinheirada da cidade do Rio de Janeiro. Colaboravam nesta revista: Arthur Azevedo, Gonzaga Duque, Capistrano de Abreu, e Euclides da Cunha.
O segundo período se inicia com o lançamento da revista O Cruzeiro e se prolonga, em termos de linha editorial, até a década de 1960, com a introdução, entre outras modificações, da cor nas fotos de revista.
Além das modificações, propriamente técnicas, constata-se a partir dos anos 60 uma reconfiguração no campo das comunicações, este assume um caráter mais tecnocrático, diferente dos anos anteriores onde o dono das empresas era considerado um capitão de indústrias, influindo diretamente tanto nas organização de suas empresas, quanto na política nacional.
Os anos que circunscrevem o período de 30 a 60, na história das publicações ilustradas, diferencia-se da anterior, tanto pela introdução de novas técnicas de impressão, tais como a rotogravura, quanto por uma redefinição no perfil do mercado editorial, ávidos por informações atualizadas. Tais fatores foram definitivos para a mudança no padrão estético e informativo das revistas ilustradas. Enquanto o primeiro momento foi fortemente marcado pela presença de textos ficcionais, crônicas e por fotografias pequenas e independentes do texto escrito, o segundo enfatiza a notícia, a interpretação dos fatos nacionais e internacionais e as fotografias, em grande formato, a estas associadas.
É importante enfatizar a diferença entre estes dois períodos, como forma de caracterizar as mudanças inscritas na própria transformação da audiência das revistas, dentre as quais se pode destacar: a ampliação dos estratos médios da sociedade carioca, crescimento urbano e valorização de padrões comportamentais associados aos meios de comunicação, passando a mídia a ser um elemento importante na formação do gosto.
A revista O Cruzeiro foi lançada no dia 10/11/1928, com uma tiragem inicial de 50.000 exemplares, cifra bastante significativa para a época. Em seu editorial de lançamento, evidenciou-se o perfil moderno e inovador que OS DIÁRIOS ASSOCIADOS, empresa pertencente a Assis Chateaubriand e responsçvel pela publicação de O Cruzeiro, O JORNAL e o DIÁRIO DA NOITE, queria traçar para si mesmo:
"Depomos nas mãos do leitor a mais moderna revista brasileira. Nossas irmãs mais velhas nasceram por entre as demolições do Rio Colonial, através dos escombros a civilização traçou a reta da avenida Rio Branco: uma reta entre o passado e o futuro. O Cruzeiro encontrará ao nascer o arranha-céu, a radiotelephonia e o correio aéreo. O esboço de um mundo novo no novo mundo (...).A revista é um compêndio da vida (...) revela a sua expressão educativa e estética, por isso a imagem é um elemento preponderante. Uma revista deve ser como o espelho leal onde se reflete a vida, seus aspectos edificantes, atraentes e instrutivos" (O Cruzeiro, 10/11/1928).
Neste contexto, ao mesmo tempo que a revista O Cruzeiro se inseria no conjunto das chamadas publicações "frívolas", advogava para si o direito, quase missionário de ser o espelho fiel da vida. Tal postura inscreve-se num contexto cultural, no qual a imprensa exerce uma influência decisiva não somente na interpretação, mas também, na própria elaboração dos fatos sociais. Sendo assim, a imprensa segundo a concepção desta revista, ficaria encarregada da nobre missão de, no caso dos jornais, julgar, e no das revistas, depurar os fatos da vida para que o leitor se educasse de forma correta.
Esta postura tem como premissa básica a idéia de que o que está escrito é a própria verdade. Tal concordância seria reforçada pela utilização maciça de imagens. Isto porque, a imagem, diferentemente do texto escrito chega de forma mais direta e objetiva é compreensão, com menos espaço para dúvidas, pois o observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia nos seus próprios olhos.
Com o intuito de reafirmar o papel predominante da imagem sobre o texto, a empresa dos DIÁRIOS ASSOCIADOS investiria, três anos depois do lançamento da revista, na modernização dos equipamentos de impressão, buscando uma melhoria na qualidade da imagem fotográfica. Em breve as páginas de O Cruzeiro, ganharam cor, a princípio, exclusivamente em ilustrações e caricaturas e, bem mais tarde, em fotografias.
Em sua primeira fase editorial, que se prolongaria até o final da década de 1930, a revista O Cruzeiro, apesar de em muitos pontos assemelhar-s às outras revistas ilustradas contemporâneas, especialmente à REVISTA DA SEMANA, apresentou um caráter mais cosmopolita, obtido através da utilização dos serviços das agências de notícias internacionais, ampliando o seu universo temático. Um exemplo disso, foi o aparecimento de sessões exclusivas, como a chamada: "Pelas Cinco Partes do Mundo".
Resultado do empenho pessoal do dono da empresa Os Diários Associados, Assis Chateaubriand, a O Cruzeiro, surge no mercado editorial de publicações semanais, com o real objetivo de inovar. A O Cruzeiro de Chateaubriand era uma revista com papel da melhor qualidade, repleta de fotografias, com os melhores articulistas e escritores do Brasil e do exterior, compondo seu quadro de intelectuais, além de assinar todos os serviços internacionais de artigos e fotografias. Foi lançada nas principais cidades e capitais do Brasil, com tiragem inicial de 50.000 exemplares, uma cifra considerável para o mercado editorial, dos anos vinte, acostumados a números mais modestos que iam, no máximo, a 27 mil exemplares.
Todo este investimento foi feito, por Chateaubriand, não ter competidores a sua altura e para ampliar o estoque de capital político à sua disposição. Ambos os movimentos reforçaram influêndeste empresário, tanto na rede social, composta pelos setores dominantes, quanto no aparelho de Estado.
No entanto, foi a partir da década de 1940 que a O Cruzeiro incorporaria o padrão de qualidade das publicações internacionais, incluindo, desde então, nas suas primeiras páginas um detalhado expediente, onde se pode constatar a especialização dos serviços da revista em vários departamentos, nos moldes das famosas revistas LIFE, LOOK, PARIS MATCH, entre outras. Por esta época, O Cruzeiro já contava com uma tiragem de 120.000 exemplares.
Dentre os repórteres que faziam parte do quadro regular da revista constavam: David Nasser, Edmar Morel, Rocha Pita, Nelly Dutra, etc. Como colaboradores eventuais: José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Millôr Fernandez. Cabe ressaltar que foi O Cruzeiro a primeira publicação a conceder o crédito das fotografias publicadas, contando inclusive com um departamento e equipe fotográfica que reunia fotógrafos tais como: Jean Manzon, Edgar Medina, Salomão Sciclar, Lutero Avila, Peter Scheir, Flávio Damm, José Medeiros entre outros. Estes encarregados, juntamente com os fotógrafos de introduzir uma linguagem fotográfica: o fotojornalismo.
Uma nova linguagem imbuída de um caráter fundamentalmente didático e de um controle rígido da correlação texto/imagem, por parte da equipe editorial. O fato é literalmente construído, seguindo esta nova tendência as fotografias deixaram de ser simplesmente dispostas nas páginas das revistas, para serem, com diferentes tamanhos e formas, deliberadamente arranjadas rompendo com o esquema ilustrativo tradicional.
Com tais mudanças a revista O Cruzeiro, promoveria uma reformulação geral no padrão das publicações ilustradas, que tiveram de reordenar toda sua linha editorial para poder concorrer com o novo padrão estético imposto por O Cruzeiro. algumas publicações que tradicionalmente tinham uma boa entrada no mercado, tais como: Careta, FON-FON e REVISTA DA SEMANA, conseguiram se reformular e sobreviver.
Ver, imaginar, criar: os quadros de representação social da classe dominante nas revistas ilustradas cariocas
Para proceder a recuperação dos quadros das representações sociais de comportamento da burguesia urbana, elaborado pela imprensa ilustrada carioca, na primeira metade do século XX, através da imagem fotográfica, organizou-se um "corpus", ou seja, uma série fotográfica extensa e homogênea.
Tal série foi composta por 867 fotografias selecionadas das revistas O Cruzeiro e Careta, em anos-chaves nos quais as revistas sofreram modificações na forma da expressão e na forma do conteúdo5
Neste sentido destacou-se respectivamente, 1908, 1914, 1922, 1928, 1935, 1942, 1949 para revista Careta e 1928, 1934, 1943, 1950, para a revista O Cruzeiro. Em cada ano foram escolhidos três números relativos, cada um, a uma época do ano: janeiro/fevereiro, junho/julho e dezembro, com o intuito de cobrir os principais eventos da cidade, tais como: festas de fim de ano, carnaval e as aberturas de temporada - verão e inverno. Vale lembrar que a revista Careta e O Cruzeiro foram escolhidas devido a constância na periodicidade, volume de fotografias, condições de acesso e reprodução das imagens e por serem, cada qual, um exemplo típico de dois momentos das publicações ilustradas, anteriormente assinalados.
O segundo passo foi a escolha de um eixo de análise que desse conta do caráter não-verbal da linguagem fotográfica. Optou-se pela avaliação de como a noção de espaço foi codificada, na mensagem fotográfica, elaborada pelas revistas ilustradas. Tal escolha justifica-se tanto pelo papel determinante que a noção de espaço ocupa nas linguagens visuais, gestuais, etc., como nos critérios a partir dos quais o imaginário urbano é construído, tomando-se sempre como referência básica a existência de um "topos". Desta forma, a noção de espaço codifica tanto a expressão da linguagem fotográfica como o conteúdo, a esta subjacente, nos semanários ilustrados da primeira metade do século XX.
Entretanto, cabe ressaltar que tal noção não é homogênea, seu desdobramento é balizado pelas unidades culturais que estruturam a mensagem fotográfica e que podem ser organizadas, para efeito de análise, em categorias espaciais, tais como: espaço fotográfico, espaço geográfico, espaço do objeto, espaço da figuração e espaço da vivência (Mauad, 1996).
Cada uma delas é analisada, separadamente, no entanto, na dinâmica de produção de sentido social, entrecruzam-se. Em tal processo, balizam a elaboração dos quadros de representação social, norteadores das formas de ser e agir da burguesia urbana.
As opções estéticas, as formas de consumo, os lugares da cidade que deveriam ser freqüentados, como signo de distinção e pertencimento social, enfim, toda uma codificação em torno da noção de 'bom gosto' (identificado com o gosto burguês), era estabelecida pelas imagens fotográficas e padrão gráfico das revistas ilustradas.
A seguir serão avaliadas as categorias espaciais, acima apresentadas, nas fotografias de ambas as publicações - Careta e O Cruzeiro - buscando-se, com isso, recuperar os comportamentos e os quadros de representação social, correspondentes a burguesia urbana6 em ascensão.
Flagrantes e instântaneos
A composição do espaço fotográfico, está intimamente relacionada ao tipo de aparelhagem utilizada. A máquina fotográfica limitará as possibilidades de enquadramento, tamanho, profundidade de campo e nitidez da foto.
As imagens fotográficas das revistas ilustradas sofreram uma variação de padrão correspondente é própria evolução da técnica fotográfica, e do acesso que as redações das revistas tinham a este progresso tecnológico. Paralelamente a estas variáveis, mais um fator interfere na composição do espaço fotográfico das revistas ilustradas, qual seja: a relação da imagem com o texto escrito.
Neste sentido, as variáveis na composição do espaço fotográfico, nas revistas ilustradas foram as seguintes:
  • Tamanho da foto: variou entre pequeno, médio e grande. As fotos pequenas tomaram, no máximo 1/8 do espaço total da página, média, cerca de 1/4 e a grande, mais de 1/2. A opção por expressar os valores métricos em frações, deveu-se ao fato de que as fotografias não possuíam um padrão métrico constante, como, por exemplo, as fotografias que integram um álbum de família.
  • Formato da foto: variou entre o quadrilátero, que inclui o formato retangular e o quadrado, e a circunferência, que inclui o formato oval e circular, bem como outras formas semelhantes, como no caso de foto dentro de letras ou emolduradas.
  • Suporte da foto: caracteriza-se pela forma da relação entre o texto escrito e a linguagem fotográfica. Quanto tipo de relação foram estabelecidos e um dado foi levantado:
1ª relação: reportagem fotográfica com título, texto e legenda.
2ª relação: reportagem fotográfica com título e legenda.
3ª relação: fotografia avulsa com título e legenda.
4ª relação: fotografia avulsa somente com título.
O dado levantado é a existência de parceria entre fotógrafo e repórter, ambos assinando seu trabalho, texto escrito e visual. Recurso nas reportagens fotojornalísticas a partir de fins da década de 1930, estabelecendo uma nova relação entre linguagem escrita e visual.
  • Tipo da foto: posada ou instantânea, para se avaliar o grau de naturalidade das fotos e se detectar a existência de comportamentos emergentes.
  • Enquadramento: item que reuniu o sentido, a direção a distribuição dos planos, o objetivo central e o arranjo das fotos coletivas, como forma de avaliar a hierarquização do espaço fotográfico e possíveis seqüências de significados.
  • Nitidez: item que inclui o foco, a impressão visual e a iluminação. A avaliação apurada de tais itens, ao longo do tempo, permite recuperar as mudanças estéticas na forma de expressão da fotografia de imprensa, enfatizando-se, ou não o mito da verdade fotográfica.
A revista Careta apresentou o seguinte padrão de espaço fotográfico ao longo dos 50 anos cobertos pela análise:
Tamanho
40% pequenas; 30% grandes; 30% médias
Formato
Retangulares (99%)
Suporte
Reportagem fotográfica com título e legenda (44% do total)
Tipo
68% posada e 32% instantâneos
Enquadramento
Sentido horizontal (66%); direção central (57%); 2 planos distintos (80%); grupo misto como objeto central dispostos eqüitativamente em semicírculo ou linha reta (quase não há fotos com pessoas espalhadas)
Nitidez
Linhas definidas (90%), com todos os planos no foco (90%); sem sombras e com contraste (90%)
O espaço fotográfico da revista O Cruzeiro configurou-se da seguinte maneira:
Tamanho
58% pequenas; 26% médias e 14% grandes.
Formato
Retangulares (99%)
Suporte
Reportagem fotográfica com título, texto e legenda (72% do total sendo que cerca de 50% foram realizadas nos moldes do fotojornalismo)
Tipo
60% fotos posadas contra 40% de instantâneos
Enquadramento
Sentido vertical (76%); direção central (56%); 2 planos distintos com objeto central concentrado no 1° plano devido a opção vertical (80%); mulher como objeto central (27%).
Nitidez
Linhas definidas (90%); objeto central no foco (74%); sem sombras e com contraste (90%)
Como pode ser constatado pelas tabelas acima existiam poucas diferenças entre as duas revistas. A Careta apresentava imagens com contornos bem definidos, planos distintos, equilíbrio de elementos e homogeneidade de organização. Tais opções reafirmam o pressuposto de que, o que era exibido na foto, mantinha uma relação direta e objetiva com a própria realidade.
Já a O Cruzeiro, foi mais ousada, principalmente numa avaliação de cada período separadamente, quando constata-se, a influência de outros tipos de imagem, como o cinema, nas opções estéticas. No conjunto dos anos analisados, as imagens caracterizaram-se pela concentração no plano central, homogeneidade, pouca profundidade, definição de linhas e contornos e pela sexualização do espaço figurativo, com a escolha da mulher como objeto central da maioria das fotos7. Tal padrão, ao contrário, do anterior expressa uma carga maior de subjetividade própria as expressões artísticas. Tal fato deveu-se principalmente a existência de um grande número de reportagens fotográficas, nos moldes do fotojornalismo, cujas fotos eram identificadas e o trabalho do fotógrafo valorizado na sua dimensão criativa, muito mais do que informativa.
Por outro lado, a opção pelo fotojornalismo, criou uma ancoragem da imagem para com o texto escrito. Sendo estas interpretadas a partir das idéias escritas, limitando, assim, a autonomia do texto visual em relação ao escrito. Ao mesmo tempo enfatizava o caráter didático que a imprensa assumiu a partir da década de 1940.
Geografia da diferença
A cidade, suas avenidas, praias, contorno dos morros ou a baía - um espaço próximo e vizinho compõe uma determinada imagem do Rio de Janeiro que, por predominar silencias as demais.
O Brasil, suas regiões e paisagens, cria uma imagem que expõe tanto a face de riqueza e desenvolvimento quanto a o lado pitoresco e exótico de um país tõo cheio de diversidade.
O estrangeiro surge nas páginas ilustradas através das cidades-capitais e seus modos de vida peculiares. Imagens que indicam a ampliação dos contatos internacionais, o mundo torna-se, como que por mágica, ao alcance dos olhos. Tudo isso incita a curiosidade e a adoção de modismos e comportamentos emergentes.
O espaço engendrado pela mensagem fotográfica das revistas ilustradas, tem como característica básica a variedade. Entretanto, mesmo dentro desta variedade, existe uma hierarquia de temáticas que são associadas a determinados espaço s
No conjunto as imagens analisadas nas revistas Careta e O Cruzeiro o espaço geográfico foi dividido em três grandes blocos regionais, cuja proporção de incidência na imagem foi a seguinte:
Região
Revista CARETA
Revista O Cruzeiro
RJ - zona Sul
36, 5%
24, 5%
RJ - Zona Norte
7%
1%
RJ - centro
24%
15%
RJ - Subúrbios
1%
4%
Estado do RJ
2%
9, 5%
Fora do Rio, no Brasil
10%
8%
Fora do Brasil
15%
32%
RJ (não identificada)
4, 5%
6%
É importante ressaltar que, cada uma destas regiões manteve uma relação com o eixo principal - a cidade do Rio de Janeiro - ora reforçando-lhe seu caráter cosmopolita, ora atribuindo-lhe determinadas funções que podiam ser turísticas, políticas ou propriamente de palco para o desfile de personagens da classe em ascensão, a burguesia.
O blocos regionais, por sua vez, foram, subdivididos em diferentes lugares, compondo uma paisagem formada por clubes com seus salões luxuosos e áreas externas, estádios de esporte, hotéis, praias, avenidas e ruas, edifícios públicos, escolas, teatros, estúdios, ambientes domésticos, selvas, etc.
Duas regiões se destacam do conjunto: na revista Careta, a região RJ - Zona Sul e na revista O Cruzeiro, o estrangeiro. Emblemas de um estilo de vida que estava se impondo. Comecemos pela zona sul, da cidade do Rio de Janeiro, e sua identificação com o habitus da classe dominante.
A zona sul de Rio abarca os bairros litorâneos localizados entre o mar e os morros. São mais distantes do centro de negócios e, até os anos 50, eram fundamentalmente destinados a moradia e lazer das camadas mais ricas da população urbana. Portanto, era uma área onde se podia facilmente retratar a vida, os hábitos, as maneiras de vestir, os passeios, eventos, etc., de uma classe que cada vez mais se identificava com os valores e comportamentos da burguesia ocidental.
Os lugares de maior incidência, nas fotos da zona sul, da Careta, são: os parques, avenidas, ruas, clubes, praias, estádios de futebol de clubes, os hotéis e as veredas tropicais a beira mar. Assim, os lugares fotografados compunham uma mensagem que reafirmava a vocação de estes espaço s ao lazer e a diversão de setores privilegiados da população. A freqüência em tais lugares, como não era aberta ao público, atuava para o seu usuário como um signo de distinção social.
Una tendência evidenciada nas fotografias de escolas, onde o tema escolhido, não foi o das salas de aula, mas as festas de formatura e de fins de ano; no mesmo estilo, os prédios públicos, principalmente, o palácio do governo, localizado no bairro de Laranjeiras (zona sul), compareceram somente nas fotos de festividades, geralmente, Natal, quando se distribuíam, nos jardins do palácio, presentes aos pobres. Mais uma vez reafirma-se a idéia de privilégio na forma de representação dos espaço s freqüentados pelos grupos dominantes. Em relação as escolas, os ritos de passagem evidenciavam o aprimoramento cultural e intelectual dos filhos e netos dos donos do poder, paralelamente, a caridade garantia a manutenção da distancia social entre os grupos privilegiados e os desfavorecidos, agentes e pacientes do ato caridoso.
Neste sentido, a zona sul da cidade sempre foi associada a códigos de comportamentos relacionados aos grupos dominantes, emblemas de sua distinção social, tais como: banhos de mar na pria da Urca, defronte ao Cassino em grandes tendas; bailes de formatura do Clube Fluminense, com seus lustres e espelhos, criando uma ambiência de exclusividade e luxo; lanches na varanda do hotel Copacabana Palace, tendo como ornamentação a bela avenida Atlântica, reformada e cheia de automóveis importados, entre outros exemplos.
N'O Cruzeiro, a maioria das fotografias analisadas são de localidades estrangeiras, destacadamente a Europa Ocidental e Hollywood. Da Europa Ocidental chegam notícias das guerras e dos grandes fatos que marcaram a história contemporânea da humanidade. No entanto era com Hollywood que o carioca (como era e todavia são chamados os habitantes da cidade do Rio de Janeiro), se reciclava e assimilava o padrão burguês de comportamento como uma norma de atitude.
Ao longo década de 1920, os Estados Unidos da América, cresceram economicamente, despontando como a terra do dinheiro fácil, de homens vigorosos e da ilusão consumista. Uma sociedade afluente, moldada sob medida para uma classe dominante carente de um projeto cultural próprio, tal como a burguesia carioca se apresentava. O automóvel americano e as fitas de Hollywood exportaram o 'american way of life'.
No caso do Rio de Janeiro, capital federal, a indústria cinematográfica, através da Companhia Cinematográfica Brasileira, consegue intervir no panorama urbano com a construção da Cinelândia. Um espaço, no centro de negóciosda cidade, totalmente reformado para abrigar as novas salas de cinema. Ir ao cinema havia se transformado no ato de consumo de um produto: o filme, daí a necessidade de locais adequados para consumi-los.
Ingressos caros, mas conforto, higiene e luxo eram oferecidos, a todos os freqüentadores, pelos quatro cinemas inaugurados na Cinelándia, entre 1925 e 1928. Capitólio, Odeon, Palácio e Glória, com suas estréias espetaculares, produziram um novo espaço de aparência na geografia da cidade.
A revista O Cruzeiro lança em 1928, ano da inauguração do último cinema do complexo, uma sessão denominada Cinelándia. Aí eram tratados as 'coisas do cinema', numa composição de fotografias e comentários sobre a vida pessoal dos artistas, cenas de filme, a qualidade da audiência nos cinemas, etc.
Tal tendência alastrou-se por outras publicações ilustradas que, nos anos subsequentes inauguram sessões exclusivamente sobre Hollywood, sinônimo de cinema, dentre as quais destacam-se: 'galeria dos artistas da tela' (FON-FON); 'Novidades de Hollywood' (Careta); 'Cine-revista' (O Cruzeiro), etc. Além das revistas especializadas em cinema, tais como: SELECTA; CINEARTE e PARA TODOS.
O cinema, incentivado por tais publicações, passou a fazer parte do cotidiano social carioca reordenando a geografia de diversões, ao mesmo tempo que impunha novos códigos de comportamento.
A imagem proveniente de Hollywood influenciava no tipo da indumentária, nos cortes de cabelo, na maquiagem do rosto, na forma de beijar8, bem como na redefinição dos locais de lazer da burguesia carioca, e na estruturação de um 'star-system' nacional utilizando-se das artistas do rádio. Nos anos quarenta a política da boa-vizinhança encetada pelos EUA, para os países da América Latina, redefiniria a estratégia de sedução Hollywoodiana. Carmem Miranda e o personagem de Walt Disney, Zé Carioca, tornaram-se ícones a partir dos quais deveríamos nos modelar. Uma imagem imposta redefinidora da nossa própria auto-imagem.
Neste momento, não só o Brasil, mas a sociedade latino-americana como um todo, sofrem um processo de internacionalização. Em tal processo as referências culturais de caráter tipicamente burguês, já consolidadas nas sociedades do hemisfério norte, mesclam-se aos valores tradicionais de cada formação social, gerando uma cultura híbrida. A marca fundamental, deste novo padrão cultural, foi a valorização do popular, na sua dimensão de mercadoria de consumo e a manutenção dos códigos comportamentais pautados na exclusão social.
Nesse contexto, uma nova sociabilidade urbana, se forma com base nos códigos de representação social que valorizam o samba, o malandro, a boêmia, enfim elementos de uma cultura popular, apropriados e reelaborados pelo ótica do estrangeiro.
Portanto o popular passa a ser uma mercadoria consumida através da organização do chamado "star-system", composto pelas estrelas e astros dos filmes de Hollywood, das chanchadas da Atlântida9, dos programas e novelas da rádio Nacional e pelas fotografias das revistas, que veiculavam a imagem de todos os agentes destas atividades, como símbolos da nossa brasilidade.
O reverso desta imagem é a exclusão, de fato, de setores populares das áreas valorizadas da cidade, da diferenciação de lazer de elite e do povo, do agravamento das diferenças sociais e da perda de referências culturais proprimamente nacionais.
Por outro lado, a ênfase dada ao espaço estrangeiro, pela revista O Cruzeiro, explica-se por ser esta uma revista mais cosmopolita e criada a partir do novo padrão empresarial da imprensa moderna. Em compasso com esta tendência, mantinham contato direto com as agências internacionais de notícias, tais como: Schert de Berlim, ABC de Lisboa e o Consórcio Internacional de Imprensa de Paris, além de manter um correspondente especial em Hollywood.
Nestas imagens há ausências. O leste Europeu e o Oriente, surgem como somente como paisagem exótica. No entanto, a América Latina, os bairros pobres da cidade e do Brasil, são apagados da imagem dominante como uma realidade inexistente. Equiparados à condição de periferia na configuração da geopolítica ocidental burguesa.
Ambas as publicações seguem uma tendência semelhante, salvo as ênfases acima apresentadas. O Cruzeiro marca sua diferenciação do conjunto de revistas ilustradas, investindo no aspecto cosmopolita de Rio de Janeiro, Capital Federal, enquanto, a Careta manteve sua tradição de revista de crítica de costumes, tipicamente carioca, elevando as imagens da zona sul ao padrão ideal de representação.
Enquanto a O Cruzeiro opõe a cidade a um outro espaço: Rio x Mundo, buscando sua identificação, a Careta complementa a cidade com este espaço estranho, criando uma nova identificação: Rio = Mundo.
Vele complementar tal avaliação pela dimensão política da cidade, centro de decisões ligada ao gerenciamento dos negócios públicos e privados. A cidade-capital, surge nas fotografia como referência paradigmática de Brasil. Ao longo de cinqüenta anos de imagem o Rio passa de Paris dos trópicos, símbolo da modernidade sustentada por uma elite agrária dominante, à metrópole sintetizada nos arranha-céus da Av. Presidente Vargas, inaugurada em 1945. Em todos estes momentos atualiza sua função de centro de poder, local onde se decide o futuro do país e de onde o Brasil se projeta para o mundo civilizado. Uma estratégia das classes dominantes, em manter a unidade nacional, através da identificação do país com sua capital.
Emblemas do gosto burguês
Os objetos, numa coleção de fotografias de revista, são atributos da mensagem fotográfica que fornecem a dimensão dos lugares retratados e dos eventos a estes relacionados.
Para efeito de análise dividiu-se os objetos retratados em três tipos: objetos-pessoais, objetos-interiores e objetos-exteriores. Na mensagem fotográfica transmitida pelas revistas ilustradas, tais objetos forma apresentados tanto como dignos do padrão de vida dominante, como objetos úteis para a realização de determinadas tarefas. entretanto, em ambos os casos, o objeto investe a imagem de determinados significados próprios ao espaço e tempo da representação.
Os objetos-pessoais estão associados à representação do indivíduo: seu estilo de vida e sua posição na hierarquia social. Os objetos-interiores caracterizam o tipo de paisagem que se está retratando: privada ou pública; muitas vezes, como no caso das cenas de filmes, a transposição de objetos-interiores para espaço s públicos, como estúdios de cinema, visam criar, justamente, uma ambiência privada. O terceiro tipo, os objetos-exteriores, caracterizam o meio retratado, podem também, quando associado às pessoas, indicar o estilo de vida e o padrão social, no qual elas se enquadram.
É, especialmente, no âmbito dos objetos que a mensagem fotográfica das revistas ilustradas entra na intimidade do leitor, moldando-lhe os gostos e educando-lhe o olhar, interferindo, tanto na sua representação pessoal, quanto na criação de novos códigos de comportamento para uso coletivo.
Tal processo ocorre porque, estes três tipos de objetos, que fazem parte do cotidiano dos receptores das mensagens fotográficas, ao serem recortados da realidade vivida e transpostos para a realidade da imagem, adquirem uma função-signo de modelo, na qual estão investidos de um poder de persuasão, até então não dimensionado. A combinação de redes de significado compondo objeto + figuração + vivência, aderem a representação indicando formas corretas de se comportar em diferentes ocasiões.
No conjunto das fotografias analisadas evidenciou-se um estilo de vida baseado no consumo supérfluo do luxo e da abundância de objetos, marca registrada do novo cidadão urbano. Em 70% das fotos os objetos estão em segundo plano atuando como elemento de reconhecimento do ambiente retratado, em geral urbano (66%) e elegante, tais como: clubes (26%), ruas e avenidas da moda (24%) e hotéis (14%). Em termos de objetos-pessoais, em 50% das fotos analisadas a indumentária escolhida incluiu trajes como: gala, passeio completo, esporte fino e esportivo. Tal preocupação pelo traje adequado para a hora certa denota a existência de um código do bem-vestir pautado na utilização de objetos-pessoais tanto para a caracterização da situação que se esta vivenciando, como elemento de distinção social.
Os donos do olhar: hierarquia de gênero e idade na representação social da burguesia
Compreendendo o espaço da figuração, engendrado pela mensagem fotográfica, das revistas ilustradas, a partir de três oposições básicas: grupo/indivíduo; homem/mulher e adulto/criança, desvenda-se o seguinte mundo
Um mundo no qual os habitantes possuíam lugares determinados no espaço da representação. Nesta a imagem feminina estava associada à frivolidade e aos papéis de espectadora e modelo exemplar, e a masculina à ação, inteligência e ao poder. No trabalho de relacionar a figuração ao evento retratado, tal distinção evidenciou-se.
Os homens foram relacionado às temáticas que incluem: os eventos sociais, militares, políticos e esportivos, além das curiosidades nacionais e internacionais, item que contêm uma grande variedade de temas que poderiam incluir desde os acontecimentos cotidianos da cidade - tipo desastre de avião ou automóveis, especialidades culinárias dos cozinheiros dos principais hotéis e clubes da cidade, reportagens sobre recursos naturais, etc. - até as últimas novidades do século XX.
Por outro lado, a imagem feminina foi associada à vida dos artistas e de pessoas famosas do high society internacional e principalmente à moda. Sobre a moda havia uma distinção entre as novidades internacionais e a sua utilização no âmbito nacional. É justamente através da imagem da moda nacional que a especialização entre o espaço feminino e masculino evidencia-se mais claramente, posto que, tal temática está representada nas fotografias do Jockey Club, onde as mulheres são retratadas como o público elegante, destacando-se a sua indumentária bem cuidada e o seu estilo elegante. Até mesmo quando a figura masculina incluída neste âmbito aparece em segundo plano e em pequeno número. Assim, em tais representações, o espaço masculino asssocia-se ao esporte e a ação e o feminino à moda e ao papel de assistente.
No entanto, foi também no espaço feminino que se incluíram imagens das condições de vida das classes populares, veiculando uma representação dicotômica da sociedade que vem a confirmar os papéis socialmente impostos.
A mulher das classes populares é fotografada, via de regra, trabalhando em serviços braçais, tais como: lavar roupa, cozinhar, cuidar de criança, etc., ou em situações de dificuldade e precariedade. A ela são associadas roupas simples e à sua casa poucos objetos interiores, além de estar localizada nos subúrbios desassistidos pelas autoridades.
Nesse sentido, o espaço feminino para as classes populares é um espaço periférico, que acaba por confundir-se ao coletivo, não recebendo com isso, a mesma valorização das mulheres da classe dominante, que surgiam na imagem sempre com boa aparência, em lugares exclusivos e protagonizando situações de lazer ou de romance
Na representação criada pela imagem fotográfica o universo infantil é um simulacro do adulto, no qual todas as potencialidades para um cidadão realizado são apresentadas como condição natural e inerentes ao grupo social do qual provêm.
Em 10% das fotos analisadas as crianças aparecem sozinhas, em 14% estão acompanhadas de adultos, o restante são fotos exclusivamente de adultos. Diante de tal proporção investiu-se na descoberta dos temas e do tipo de indumentária que foram associado às crianças, para dimensionar-se quais representações sociais que estavam atreladas ao universo infantil.
Basicamente, os eventos sociais, os banhos de mar e os passeios foram os temas que obtiveram a maior incidência de crianças sem a companhia de adultos (21%). Neste caso os eventos sociais são formados por festas de encerramento do ano letivo e por bailes infantis em ocasiões especiais - o exemplo deste tipo de evento são as fotos da Exposição Internacional de 1922, que contou com o equivalente infantil para o baile comemorativo do centenário da Independência.
Acompanhada de adultos as crianças são retratadas nos eventos sociais, militares, políticos, esportivos e nos passeios e banhos de mar (18%). Desta vez os eventos sociais, temática de maior incidência (7%), compõem-se por festas de caridade com a presença de menores carentes.
Com efeito, mesmo quando as crianças são retratadas independentemente dos adultos mantêm-se a eles atreladas, quer através da temática - geralmente equivalentes infantis para eventos adultos - ou pela relação que com os adultos estabelece, no caso da ação caridosa a marca da dependência fica evidenciada.
No espaço infantil a sociedade reaparece segmentada em dois grupos sociais distintos: um que, socialmente despossuído, depende do universo adulto através da caridade; outro que compartilha da fruição dos lugares exclusivos e do consumo dos signos de luxo e riqueza e que se prepara para assumir os papeis já estabelecidos na dinâmica social. A própria indumentária reafirma a existência de tais papéis, tendo em vista que, do conjunto de fotos de crianças acompanhadas ou não de adultos, em cerca de 36% estão fantasiadas, 18% trajam passeio-completo e 16, 5% o esportivo. De acordo com tal proporção é a fantasia a escolha principal para compor o espaço infantil, dentre as quis se destacam: príncipes, nobres, militares, esportistas, bailarinas, etc. Imagens que associam as crianças a representações sociais tipicamente adultas e de um certo universo de adultos.
Distinção social e vivência de classe na sociedade carioca da primeira metade do século XX
Em 1950, no Rio de Janeiro, florescia um mundo moderno de metrópole burguesa definitivamente constituída. Um espaço bem marcado, com suas fronteiras delimitadas pela 'gare' da estação de Trens Central do Brasil e pela orla marítima. Nesse intermédio, viviam o Rio moderno e promissor, sociedade afluente de signos de distinção. Para além da Central do Brasil, os subúrbios eram o reverso desta imagem, era onde "@@a vida tem horizontes exíguos e as aspirações e os sonhos encontram seus limites nos trilhos da estrada de ferro, sendo o rádio a única porta de evasão"10.
Ao longo da primeira metade do século XX, das representações sociais de comportamento engendradas pela imagem fotográfica, das revistas ilustradas, surge uma cidade onde os espaço s são redimensionados para atividades as quais não foram programados, em função de uma vivência de classe. Neste sentido, o lazer é associado ao trabalho no exercício do poder, a medida que os grandes negócios empresariais ou as importantes questões nacionais eram resolvidos em banquetes e festas.
Os espaço s adquiriam uma nova dignidade por terem sido fotografados como ambientes para eventos exclusivos, ou simplesmente, porque neles se deixaram fotografar, pessoas ostentando objetos que caracterizassem um determinado estilo de vida associado ao luxo e à exclusividade.
Assim a coesão de classe e a construção de uma Capital cosmopolita e moderna, plenamente preenchida por valores de tipo burguês, se processa tanto através da vivência e do consumo de um mesmo universo de signos, como pela produção de uma imagem onde o "locus" social aparece como dado inerente a própria história
Neste sentido, o pobre é retratado como naturalmente pobre e o rico como naturalmente rico, posto que, em nenhum momento são representados fora do código dominante que associa um determinado espaço geográfico a certos objetos e pessoas, orientando com isso a própria representação dos eventos/vivência dos grupos sociais. Assim, a naturalização do processo histórico, através da hegemonia da imagem fotográfica dominante, atuou como elemento estruturante das representações sociais de comportamento, que se instituíram ao longo da primeira metade do século XX, moldando os gostos e escolhas dos cidadãos que se tornavam consumidores.
As revistas ilustradas, compuseram o catálogo de valores, emblemas, comportamentos e representações sociais, através do qual a burguesia se imaginou e se fez reconhecer, criando a utopia de um mundo digno, porque civilizado e empreendedor, e livre, porque acessível e transparente aos olhos de todos.
A imagem publitorna-se o ícone, por excelência, de um modo de vida vitorioso, que prescinde da própria realização para existir, bastando para tanto que as imagens fotográficas o reflitam.
São cinqüenta anos de imagens que revelam o processo social de um grupo que, aos poucos, adquire consciência de classe, tanto pelo papel conquistado no âmbito da produção, quanto pelos quadros de representação social e programações de comportamento elaboradas neste processo. Tais referências culturais foram estendidas para o conjunto da sociedade como sendo a forma correta de ser e agir, relegando todos os comportamentos alternativos ao âmbito da marginalidade.

NOTAS
  1. Segundo Pierre Bourdieu, o conceito de habitus pode ser compreendido como "um conjunto de esquemas implantados desde desde a primeira educação familiar, e constantemente repostos e reatualizados ao longo da trajetória social restante, que demarcam os limites à consciência possível de ser mobilizada pelos grupos e/ou classes, sendo assim responsáveis, em última instância, pelo campo de sentido que operam as relações de força" ( Micelli, Sérgio. Economia das trocas simbólicas, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1982, p.XLII). É interessante notar, a adequação do conceito de habitus ao de representação, para os estudos dos processos de controle da produção de sentido social por parte de grupos/classes. Neste sentido, não só a imagem fotográfica, mas também o próprio ato de fotografar, se deixar fotografar e consumir imagens fotográficas, podem ser considerados importantes integrantes do habitus social. BACK
  2. Este parágrafo sintetiza informações sobre comportamentos e lugares freqüentados por frações de classe dominante que, disputavam a hegemonia cultural, na primeira metade do século XX. BACK
  3. Termos utilizados em diferentes momentos, na primeira metade do século XX, para adjetivar a classe dominante, detentora dos meios técnicos de produção cultural e do capital simbólico a disposição para a hegemonia de classe. BACK
  4. Para uma avaliação detalhada das publicações ilustradas e sua relação com a formação de comportamentos burgueses no Brasil, ver: Mauad, Ana Maria (1990) 1 v. 465 pp. ilust. 2 v. 200pp. ilust. BACK
  5. Os anos-chave foram definidos a partir de uma análise rigorosa da totalidade dos anos publicados. Ao longo dos anos as revistas apresentaram mudanças na linha editorial caracterizadas por alguns fatores tais como: diminuição do texto escrito em relação a foto, ampliação do número de fotos, mudança na identidade visual da revista, anúncio de inovações técnicas pelo editor, mudanças na equipe de colaboradores, etc. Enfim mudanças ligadas ao própio veículo, mas também considerou-se anos importantes em termos de marcos históricos relacionados a história da cidade/país e a história mundial, tais como: as grandes guerras mundiais, exposições nacionais e internacionais, reformas urbanas, eleições, etc. Via de regra o que vigorou foi um entrcruzamento destes dois critérios. BACK
  6. A historiografia brasileira sobre o período estudado, não é consensual no que diz respeito a utilização do conceito de classe burguesa, para este período da história do Brasil. Noções como camadas médias urbanas, classes médias, frações dominadas da classe dominante, são correlativos para a noção de burguesia urbana tal como a utilizamos aqui. A opção pelo conceito de burguesia urbana, deveu-se principalmente ao objetivo central do estudo, qual seja: avaliar como, dentro do contexto de inserção do Brasil na lógica do capitalismo internacional, os costumes e comportamentos no espaço das cidades, notadamente na Capital, transformaram-se. Tal transformação tomou como referência os códigos de comportamento dos paises do hemisfério norte, primeiro a França e a Inglaterra e, depois da 2ª G.G, os EUA, estes, sem dúvida alguma, pautados em valores e normas burgueses. Não cabe aqui discutir a base econômica da classe dominante brasileira do período eminentemente agrária, mas, absenteísta por natureza e cosmopolita por verniz. BACK
  7. Numa análise numérica da inidencia homem/mulher como objeto central das fotos de O Cruzeiro, padrão encontrado foi o seguinte:

1° plano
2° plano
plano central
figura masculina
18%
8%
17, 5%
figura feminina
18%
6, 5%
27%
  1. Com efeito, a tendência geral é para a distribuição equilibrada entre o espaço feminino e masculino, já que ambos incidem igualmente no primeiro plano. No entanto, há que se ressaltar a maior incidência da figura masculina em segundo plano e da feminina em plano central revelando-se aí uma maior valorização da imagem feminina na composição fotográfica da revista O Cruzeiro. Tal fato explica-se tanto pela introdução de sessões especializadas em modas, como pela valorização do corpo feminino, a partir da década de 1940, associada a uma mudança em termos de representações culturais do popular e do nacional nos meios de comunicação. BACK
  2. "Técnicas do beijo", reportagem publicada, com fotos de artistas se beijando, pela revista O Cruzeiro, em 1934. BACK
  3. Estúdio cinematográfico responsável por uma significativa produção de filmes nacionais, pautados na estética, norte-americana, durante as décadas de 40 e 50. BACK
  4. Peregrino Jr. IN: Nosso Século, SP: Ed. Abril Cultural, Vol. IV, p.154. BACK