Trabalho
apresentado na mesa-redonda: Religião, Imagem e Representação – VIII encontro
regional da ANPUH.
Ana
Maria Mauad.
Professora Adjunta do Departamento de História da UFF
Coordenadora do Laboratório de História Oral e
Iconografia da UFF
Minha intervenção neste painel procurará analisar as imagens de ritos de
passagem da vida religiosa nos álbuns de família da elite brasileira, através
de suas fotografias. Trabalhará com dois momentos: a segunda metade do século XIX e a primeira
metade do século XX, para avaliar as mudanças na forma de representação das
sensibilidades religiosas. O primeiro momento é marcado pela ausência de tais
representações nas imagens familiares. No entanto, as vivências e os ritos da vida religiosa são ,
amplamente, citados em diários e memórias familiares. Já o segundo momento,
caracteriza-se pela profusão de imagens dos ritos da vida religiosa,
servindo-se, inclusive, de tais vivências para definir os ciclos da vida em
família. Desta forma os álbuns de família do século XX, ao contrário dos do
século XIX, têm a sua narrativa pautada por : batizados, primeiras-comunhões
e casamentos.
A exposição se dividirá em três partes:
·
Imagem fotográfica como representação: na qual
procurarei identificar os nexos entre representação e imagem fotográfica, a
partir de uma abordagem histórico-semiótica.
·
Fotografia, família e religiosidade: o silêncio
oitocentista: nesta parte serão avaliados os tipos de imagens que se produziam
e a presença dos ritos da vida católica no cotidiano das famílias das camadas
médias e altas da sociedade brasileira. Cruzar-se-á as evidências escritas com
as ausências nas imagens, buscando-se entender o porque que a imagem de tais
ritos não se constituía como uma representação para a sociedade oitocentista –
mesmo que os recursos da técnica fotográfica possibilitassem tais fotografias.
·
Fotografia, família e religiosidade: a eloquência
burguesa: neste segundo momento a fotografia atinge a privacidade dos lares,
passa a fazer parte do cotidiano social, tendo como agente deste processo, os
pais de família. O desenvolvimento da técnica fotográfica levou à compactação
das máquinas, ao barateamento dos custos da produção da foto e à uma
generalização de laboratórios especializados em revelar e ampliar a imagem
fotográfica. O que antes era relatado no diário de família, passa a compor o
álbum de fotografias. A palavra escrita cede lugar à imagem fotográfica na
elaboração das representações sobre as vivências religiosas. Atuando como
importante baliza na narrativa das memórias familiares, as fotografias sobre
eventos religiosos, terão como marca de possibilidade, muito mais do que as
facilidades da técnica fotográfica, a mudança nos códigos de representação
social, fortemente marcados, desde a virada de século, por códigos de
comportamento tipicamente burgueses. Desta forma a publicização do evento
religioso pela imagem fotográfica estava associada a uma nova forma de
sensibilidade religiosa, agora relacionada à uma codificação do tipo burguês.
Fotografia como representação.
O conceito de representação passou a fazer parte do vocabulário
histórico, a partir da aproximação desta disciplina com as demais disciplinas
das Ciências Sociais, notadamente, a antropologia. No entanto, representação,
tal como tantos outros conceitos, tomados de empréstimo pela história, na
tentativa de alargar seus horizontes teóricos, merece um pouco mais de atenção,
dada a sua característica muitas vezes polissemica.
Logo de início vale atentar-se, para o fato de que o conceito de
representação, originário da matriz oitocentista da antropologia cultural –
Mauss e Durkheim- ganhou um campo mais amplo de aplicação com a gradual
aproximação da antropologia com as Ciências da Linguagem, particularmente a
Semiótica e a Semiologia.
Desta forma, tal como aponta Roger Chartier, o conceito de representação
tem, em sua base etimológica, uma duplicidade de significado, cuja aplicação,
engendra procedimentos teóricos
antagônicos:
“As
definições antigas do termo manifestam a tensão entre duas famílias de
sentidos: por um lado, representação como dando a ver uma coisa ausente, o que
supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é
representado; por outro lado a representação como exibição de uma presença,
como apresentação pública de algo ou alguém”[1]
Teríamos, segundo esta distinção, duas modalidades de representação:
1°) Representação como imagem presente de um objeto ausente. Daí,
identificada com uma noção, já ultrapassada de signo, que o definiria como algo
que mantém uma relação de substituição com o objeto que o origina.
2°) Representação como constrangimento. Neste caso a presença de signos
visíveis seriam a prova de uma encenação. Neste sentido, como completa
Chartier, “a representação transforma-se numa máquina de fabrico, de
respeito e de submissão”[2].
No entanto, deter-se, em um destes dois sentidos seria, justamente,
perder a enorme contribuição que, os estudos sobre os processos de produção de
sentido, forneceram para a compreensão e análise das práticas e comportamentos
sociais – individuais e coletivos. Dentro desta perspectiva, a definição
proposta por Sergei Moscovici, para o conceito de representação social,
desvenda toda a sua possibilidade analítica. Para este autor representação
social define-se como:
“Um
sistema de valores, de noções e de práticas, com uma dupla vocação.
Inicialmente, de instaurar uma ordem que dê ao indivíduo a possibilidade de se
orientar no ambiente social, material e dominá-lo. Em seguida, de assegurar a
comunicação entre os membros de uma comunidade propondo-lhes um código para
suas trocas e um código para dominar e classificar de maneira unívoca as partes
do seu mundo, de sua história individual e coletiva”[3]
Claro que tal definição, não se distancia muito da de Chartier quando
ele, habilita teoricamente, o conceito de representação, como a chave para a
compreensão de uma dada realidade histórica. Ao ultrapassar limiar idealista, inscrito no conceito de
mentalidade, a noção de representação ensejaria três formas de articulação das
idéias, valores e sentimentos com a dinâmica do mundo social:
“Em
primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as
configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é
contraditoriamente construída pelos diferentes grupos, seguidamente, as práticas
que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de
estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim,
as formas institucionalizadas e objetivadas graças as quais “representantes”
(instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e
perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade”[4]
Devedor da tradição sociológica inaugurada por Norbert Elias, Chartier
define representação, a partir de um outro conceito que, na verdade, o fundamenta.
O conceito fundador é o de habitus.
Para Elias, habitus é a forma de
sentir e agir não reflexiva, o equivalente à uma segunda natureza que, através
da disciplinarização das pulsões e do autocondicionamento psíquico vai, pouco a
pouco, estruturando a personalidade humana[5].
Ainda nesta linha de reflexão, Pierre Bourdieu, distingue os esquemas
geradores das práticas das representações mesmas, que envolvem tais práticas. Tais
esquemas geradores, segundo o autor, podem ser chamados de cultura, competência
cultural, ou para evitar equívocos, habitus.
Bourdieu define habitus como um sistema de estruturas interiorizadas e “condição de
toda objetivação”[6].
O habitus, dentro de tal
perspectiva, constitui a matriz, a partir da qual, os códigos de comportamento
e as estruturas sociais são internalizadas pelo indivíduo. Neste processo, o
conjunto de experiências sociais vivenciadas pelos indivíduos, ao longo de seu
crescimento, nas diferentes etapas de sua vida, estariam norteadas pelo habitus de classe. Limite e condição das
representações sociais.
Como representação a fotografia não pode ser dissociada do ato que a
fundamenta, ou seja, também se fundamenta num habitus. Muito mais do que uma mensagem que se processa através do
tempo, a fotografia atualiza, no tempo, o referente que a engendrou. Na sua
dimensão de índice, de marca e de resquício a fotografia é sempre uma presença.
Não substitui a experiência vivida, mas institui, a cada fotografia tirada, a
cada fotografia admirada, uma nova
experiência. Portanto antes de representar, a fotografia aponta, indica e
designa. Para Roland Barthes, o
certificado de presença, inscrito na imagem fotográfica, a diferencia das
demais imagens, sempre associadas aos signos icônicos:
“A
fotografia não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas e com
certeza daquilo que foi[...]. Diante de uma foto, a consciência não toma
necessariamente a via nostálgica da lembrança, mas a vida da certeza: a
essência da fotografia consiste em ratificar o que ela representa[...] a
fotografia é indiferente a qualquer revezamento: ela não inventa; é a própria
autenticação; raros artifícios por ela permitidos não são probatórios; são, ao
contrário, trucagens: a fotografia só é laboriosa quando trapaceia[...], ela
jamais mente: ou antes, pode mentir quanto ao sentido da coisa, na medida em
que por sua natureza é tendenciosa, jamais quanto a sua existência. Impotente
para as idéias gerais (para a ficção), sua força, todavia, é superior a tudo o
que o espírito humano pode, pôde conceber para nos dar garantia da realidade[...]
Toda a fotografia é um certificado de presença. Esse certificado é o gene novo
que sua invenção introduziu na família de imagens”[7]
O fundamental é diferenciar esta forma de presença daquela, relacionada
por Chartier, que relaciona-se à encenação e ao constrangimento. O filósofo
francês Philipppe Dubois, relaciona, a idéia de presença inscrita na
fotografia, à ontologia da imagem fotográfica, ou seja, a sua gênese automática
– no exato momento de sensibilização, pela luz, da superfície fílmica, o ato
fotográfico foge ao controle humano é pura escrita de luz . Daí a marca de
resquício e a relação de contiguidade estabelecida entre a imagem fotográfica e
seu referente. Daí, também a idéia de atualização e presentificação, inscritas
na pragmática do ato fotográfico.
O signo fotográfico, segundo Dubois é, dependendo do nível das relações
que estabelece com sua situação referencial, tanto índice, quanto ícone como
símbolo, ou seja, é resquício de luz, é representação por analogia e é, também,
convenção social. No entanto, mesmo, valorizando os procedimentos e atos
fundamentados em escolhas culturais – nos chamados códigos- Dubois prioriza a
dimensão indiciária do signo fotográfico, por esta implicar plenamente o
próprio sujeito na experiência:
“Em
suma, um dos grandes desafios desta lógica do índice é colocar radicalmente a
imagem fotográfica como impensável fora do próprio ato que a faz ser, quer este
ato passe pelo receptor, pelo produtor ou pelo referente da imagem. Espécie de
imagem ato absoluta, inseparável da sua situação referencial, a fotografia
afirma por isso sua natureza fundamentalmente pragmática: ela encontra seu
sentido primeiro na sua referência”[8]
A necessidade de considerar a dimensão pragmática, antes mesmo de
compreender os atributos semânticos da mensagem por ela engendrada, distingue
significativamente a fotografia dos demais meios de representação.
Portanto, a fotografia apresenta, para então, representar – assumir a sua
dimensão de mensagem significativa, de classificação ou, quiçá, de lugar de
memória. No entanto, para não cairmos numa fenomenologia do ato fotográfico é,
fundamental que, se relacione à sua pragmática fundadora, a noção circuito
social da fotografia, relativo, como tantos outros comportamentos ao habitus de cada época e grupo social.
É desta forma que entendemos a constituição dos álbuns de família. Um
procedimento relacionado a uma necessidade que orienta sua organização, de
formas diferenciadas ao longo do tempo. Desde os pesados e luxuosos álbuns
oitocentistas até o banco de imagens digitalizadas e distribuídas pela
Internet, a produção de sentido no âmbito familiar pode ter mudado na forma
mantendo, no entanto, a substancia que a alimenta, como reflete Dubois:
“Toda a prática do álbum de família vai no mesmo
sentido: para lá das poses, dos estereótipos, dos clichês, dos códigos datados,
para lá dos rituais de ordenação cronológica e da inevitável escansão dos
acontecimentos familiares (nascimento, batismo, comunhão, casamento, férias,
etc.) o álbum de família não deixa de ser
um objeto de veneração, cuidado e cultivado [...] abre-se com emoção, numa
espécie de cerimonial vagamente religiosos, como se tratasse de convocar os
espíritos. Seguramente, o que confere um tal valor a esses álbuns não são nem
os conteúdos representados, nem as qualidades plásticas e estéticas da
composição, nem tampouco o grau de semelhança e realismo das fotografias, mas a
sua dimensão pragmática, o seu estatuto de índice, o irredutível peso
referencial, o fato de se tratar de verdadeiros vestígios físicos de pessoas
singulares que estiveram ali e têm relaçòes particulares com os que guardam as
fotografias. Só isso explica o culto de que são objeto as fotos de família”[9]
Como forma de expressão das sensibilidades religiosas a fotografia, tanto
apresenta quanto representa, as formas como cada sociedade e cada grupo social,
vivenciou os ritos de passagem da vida religiosa. O interessante é notar como,
no século XIX, às opções do retrato, simplesmente, implicaram na ausência de temas relativos à
vida religiosa.. É, a partir da dialética entre aquilo que a fotografia
apresenta e aquilo que ela silencia, sobre os ritos da vida religiosa, que
refletiremos sobre as imagens produzidas pela sociedade oitocentista.
Fotografia, família e religiosidade: o silêncio oitocentista.
Como coloca Roger Chartier, toda a representação só se consubstancia numa
prática que, por sua vez, engendra uma forma de apropriação, sendo a história
cultural o estudo dos processos com os quais se constrói o sentido. Dito isso,
como interpretar a ausência de imagens dos ritos da vida religiosa – batismo,
comunhão e casamento -, nos álbuns de família da sociedade oitocentista? A
ausência na imagem é também uma forma de representação que, de forma alguma
implica na desvalorização de tais ritos. Ao contrário, esta ausência, nos
obriga, em primeiro lugar, a refletir sobre qual o papel designado a tais
práticas na sociedade e, em seguida, avaliar no que efetivamente era
fotografado a relação com tal ausência.
Em um interessante
manuscrito, denominado, “Meu nascimento e factos mais notáveis da minha vida
(1835-1900)”, o médico residente em São Cristovão, Augusto José Pereira das
Neves, rememora os fatos mais significativos de sua vida. Anualmente sumariza,
os eventos, considerados por ele relevantes, dentre passeios, doenças e
mudanças de endereço, o batizado, comunhão, casamentos e morte dos filhos dos
filhos pontuam sua narrativa, como fio condutor de um tempo que já passou, mas
que é atualizado no momento da escritura, pelo filtro da memória.
Aí encontramos devidamente referendados os ritos da vida católica. Logo,
no início do manuscrito, antes de iniciar a narrativa dos anos, José Augusto,
faz uma breve biografia de cada um de seus 10 filhos. Em tais sumários
biográficos a data com hora e o local do batismo são informações
indispensáveis, seguido do enterro quando os filhos morriam pequenos
No
decorrer do século XIX, escreve Anne Martin-Fugier, o batismo e a comunhão,
além de marcar a entrada das crianças na comunidade cristã, transformam-se em reuniões
de família, ocasiões para comprovar sua vitalidade e renovar seus atos.
Os filhos do Doutor Augusto foram batizados quase todos na matriz de Santa Rita, com idades que
variaram entre 3 meses de vida a 1 ano e três meses. Somente um deles, a filha
Annita, foi batizada “no oratório do colégio da prima Rosinha a rua Miguel de
Frias, para o que pedi licença ao vigário da Matriz de Santa Rita”.
O horário da cerimônia de batismo era livre, sendo o mais cedo às sete e
meia da manhã e o mais tarde às cinco horas da tarde, depois seguia-se uma
breve celebração. Na relação dos presentes na cerimônia, os padrinhos ganhavam
destaque, sendo anotado entre parênteses a relação que os escolhidos mantinham
com a família, isto porque, “tanto o padrinho quanto a madrinha têm a função
oficial de assegurar a educação do afilhado, no caso da perda dos pais. Mas
acima de tudo são encarregados de presentes ritualizados”
Os padrinhos também cumpriam um
importante papel no enterro dos filhos pequenos, como fica explicitado, na
seguinte passagem: “O padrinho lhe fez o enterro com toda a crença. Deus lhe dê
o ceo pobre filhinha – tão esperta e engraçadinha”.
A morte presente na narrativa verbal, como marco de consumação, também,
podia ser encontrada na fotografia. O retrato de crianças mortas não era raro
nos álbuns de família, denotando que esta forma de ritual não era interditado
ao retrato, inscrevendo a morte na imagem como forma de perenizar a presença do
ente que se foi. Uma presença que não se consome com o tempo e se atualiza a
cada novo olhar. Mesmo não estando presente o filho morto está ali.
Na sociedade oitocentista, a primeira comunhão disputa com o casamento o
título de ‘mais belo dia da vida’. Sob muitos aspectos ela antecipa o papel do
casamento, pois representa um compromisso feito perante toda a comunidade. A
cerimônia também prefigura o ritual do matrimônio, desde a indumentária –
vestidos e véus de musseline para as meninas e o sóbrio traje negro para os
meninos – até a mise-en-scéne de entrada na igreja e a expressão dos sentimentos
de comoção religiosa[10].
Apesar da igreja haver tentado, sucessivamente, adiantar a data data da
primeira-comunhão, como forma de garantir, mais cedo a pureza da alma, ao mesmo
tempo que tentava reduzir o luxo que rodeava tais celebrações. Via de regra, ao
longo do XIX, a primeira-comunhão era feita entre 10 e 12 anos. Somente no
século XX, que a data dos sete anos, pretendida pela Igreja, torna-se
obrigatória com o decreto papal de 8 de agosto de 1910[11].
O doutor Perreira das Neves, não deixou de relatar o dia da
primeira-comunhão de sua filha mais velha, com bastante emoção, denotanto a
importância do ato: “A 15 de agosto de 1874 (N.S. da Glória), fez Alice sua 1ª
comunhão, no collégio de Botafogo, dirigido pelas irmães. Fomos todos assistir
a tão solenne acto. Deus lhe conceda a sua divina graça!”.
O casamento dos filhos também merece nota, na narrativa dos fatos
notáveis da vida do Dr. Augusto José, com descrição da cerimônia, relacionando,
inclusive os convidados que compareceram. Na sociedade oitocentista, o
casamento cumpria para os setores mais aristocráticos, a manutenção da
linhagem. No caso da família, em questão, pertencentes a uma possível elite
urbana, o casamento era a garantia de que as filhas mulheres seriam amparadas e
consideradas socialmente. Afinal de contas toda a educação feminina era voltada
para este destino. Algumas vezes precoce demais.
O interessante é que a família Pereira das Neves possui fotografias que
seguem o padrão das coleções fotográficas, do século XIX, deixando de fora os
ritos tão lembrados pelo pai nas suas memórias.
Muitos outros exemplos poderiam ser citados, de famílias do século XIX
que, em seus diários, relatavam os ritos da vida religiosa, mas não os
mencionavam nas fotografias familiares. O fragmento do diário de Bernardina,
filha de Benjamim Constant, relativo ao segundo semestre de 1889, relata com
detalhes, aniversários, batizados e até mesmo o baile da Ilha fiscal, visto do
ponto de vista de quem não foi convidado. Mas as fotografias que compõem a
coleção de Benjamim Constant, mantém o mesmo padrão de tantas outra. Qual seria
este padrão?
A fotografia oitocentista, divide-se em dois tipos: panoramas e vista e o
retrato. Os panoramas e vistas, podem ser consideradas fotos públicas,
completamente, voltadas para paisagens urbanas e rurais. Guardam um estreita
relação com o panorama da pintura, em termos de opções estéticas, tais como:
distribuição equilibrada dos volumes, dos claros e escuros e opção pelo
enquadramento central e horizontal.
Também o retrato, guarda uma estreita relação com a pintura, em termos de
opções estéticas, ganhando novos atributos no que diz respeito aos elementos de
composição da foto, tais como: cenário e pose. Mas o que definitivamente,
revolucionou a arte do retrato, foi a invenção, em 1852, pelo fotógrafo francês
Eugene Disderi, do formato carte-de-visite, um retrato de proporções reduzidas
(6x10 cm), que poderia ser copiados as dúzias, trocado, guardado e presenteado,
acompanhado de uma dedicatória que remetia a imagem a alguma forma de relação
entre quem dava e recebia a imagem.
O sucesso do retrato carte-de-visite deve-se justamente a capacidade de
adaptar o cliente à moldes pré-estabelecidos e de possível escolha através de
um catálogo de objetos e situações, o estúdio do fotógrafo passa a ser um
depósito de complementos escolhidos para caracterizar diferentes papéis sociais
que se quer fabricar. A 'mise-en-scène' do estúdio do século XIX variou ao
longo do tempo, cada década no período da carte-de-viste e mais tarde do
cabinet-size teve seus acessórios especialmente característicos. Nos anos 60
era a balaustrada, a coluna e a cortina; nos anos 70, a ponte rústica e o
degrau; nos anos 80, a rede, o balanço e o vagão; nos anos 90, palmeiras,
cacatuas e bicicletas e no início do século XX, o automóvel. O próprio cliente
se converteu, ele mesmo, num acessório de estúdio, suas poses obedeciam padrões
estabelecidos e já institucionalizados de acordo com a sua posição social.
A fotografia do período não abria mão da sua própria estética, como fica
exposto no livro Estética da Fotografia, publicado por Disderi, em 1862. Neste
livro o fotógrafo francês estabeleceu seis princípios básicos de uma boa
fotografia:
1. Fisionomia agradável
2. Nitidez geral.
3. As sombras, os meios-tons e
os claros bem pronunciados, estes útimos brilhantes.
4. Proporções naturais.
5. Detalhes nos negros.
6. Beleza.
A busca da beleza se torna o ideal a ser conquistado pelo fotógrafo e
uma prerrogativa exigida pelo cliente. Ao satisfazer esta exigência o fotógrafo
cria um padrão de representação que apaga o indivíduo em prol de um estereótipo
social. Ao se reconhecer como parte integrante da mesma sociedade de imagens
que os chefes de estado, sábios e artistas, o cliente se satisfaz, pois vê
garantida da ação do tempo a representação que quer alcançar. Na fotografia
ornamentada com acessórios, na maioria das vezes ausente de seu cotidiano,
reveste-se dos emblemas de classe, com a qual quer se ver reconhecido.
A impossibilidade técnica, da
fotografia de então, em produzir
instantâneos, já que somente no final do XIX, o tempo de fixação da imagem
passa ser contado por segundos, antes
disso o tempo de exposição variou de 5 a um minuto, inscreveu no próprio ato
fotográfico oitocentista, a relação que a imagem fotográfica estabelecia com o
seu referente. Uma relação pautada na pose estática e na hierarquia dos objetos
e atributos relativos ao cenário. Paralelamente, a pratica de trocar
fotografias e de guardá-las em álbuns, ratificou a padronização da imagem
retratada, como forma de garantir a comunicação entre fotografias, concebidas
como objetos de memória.
No caso da sociedade brasileira, do século XIX, escravista e extremamente
hierarquizada, a fotografia tinha a função de ratificar através de sua imagem,
a posição do fotografado na hierarquia social. Integra, assim, o habitus das sociedades de corte, na
qual,
“a posição objetiva de cada indivíduo depende
do crédito atribuído à representação que ele faz de si próprio por aqueles de
quem espera reconhecimento; quando compreende as formas de dominação simbólica,
por meio do ‘aparelho’ ou do ‘aparato’[...] como corolário da ausência ou do
apagamento da violência bruta. É no processo de longa duração de
erradicação e de monopolização da
violência, que é necessário inscrever a importância crescente adquirida pelas
lutas de representações, onde o que está em jogo é a ordenação, logo a
hierarquia da própria estrutura social”[12]
Neste sentido, a ausência dos ritos da vida religiosa, se faz em função
da presença da hierarquia social estampada na superfície da imagem.
Fotografia, família e religiosidade: a eloquência burguesa
Bem, mas se a fotografia oitocentista, cala em relação à representação
dos ritos da vida religiosa na imagem fotográfica, a sociedade burguesa, que se
formula, ao longo da primeira metade do século XX, no Brasil, a referenda.
Desta vez, como marca de uma vivência de classe, como parte integrante do habitus, de uma sociedade que ganha em
mobilidade social e promove a renegociação, entre seus pares, dos signos de
distinção social.
Os rituais do batismo, da primeira-comunhão, da crisma e do casamento, na
classe dominante brasileira, acompanham
a tendência, inaugurada, na Europa do século XIX, de solenidade mundana. O
aparato cerimonial na igreja é feito para deixar, para cada um destes ritos,
uma lembrança indelével. Devidamente preservada pela imagem fotográfica.
Em entrevista, com algumas das donas dos álbuns de família do século XX,
indaguei sobre a importância e a dinâmica de tais ritos nas suas vidas
familiares, a resposta dada reenvia-nos para a narrativa dos diários
oitocentistas, onde tais comemorações, mais uma vez, servem de baliza para contar
sua história, tendo os filhos como
atores principais. Segue um pouco desta narrativa recriada:
O batizado
era geralmente realizado depois de alguns meses, para que a mãe também pudesse
aproveitar a festa. Os padrinhos eram escolhidos de acordo com a amizade de
cada um, mas era muito comum os avós batizarem os netos. Para ser madrinha
tinha que ter feito a primeira-comunhão. A preparação do batismo incluía o
enxoval e a festa , geralmente, um almoço na casa dos avós. Quando a criança
nascia fraquinha, era logo batizada, minha tia como passou muito mal quando
pequena, foi batizada duas vezes, a primeira rapidinho, pois achavam que ela ia
morrer, já depois que vingou, o batismo foi feito com mais calma.
Na
minha época de catequista, preparei muitas crianças para a comunhão. Era feita
com todos juntos, depois a festa com mesa de doces oferecida pelas mães. As
crianças se vestiam de anjo e eram acompanhadas por um anjo da guarda, que
podia ser o irmão ou a irmã menor. No dia da comunhão era um dia muito sério. O
jejum era total, não podia nem engolir a saliva. A gente confessava de tarde,
vinha a preparação, o padre falava com todo mundo, depois até a comunhão, todo
mundo tinha de ficar quieto, bem concentrado.. Comigo foi assim, mas com meus
filhos não. Eles fizeram primeira-comunhão sózinhos, depois teve um lanche lá
em casa.[13]
Dentre todos os ritos da vida católica, o de maior prestígio em termos de
representação fotográfica, é o casamento. Esta celebração, a partir dos anos
40, passam a ter direito inclusive a um
álbum próprio, no qual todos os momentos da cerimônia são retratados. Desta
vez, a narrativa é composta exclusivamente de imagens, deixa-se de lado o
relato escrito de tais vivências, que é amplamente substituído, pelo texto
fotográfico.
É importante ressaltar que, desde o final do século XIX, a fotografia
instantânea já é uma possibilidade. Ao longo dos primeiros anos do século XX, a
fotografia democratiza-se, devido ao barateamento e a compactação das máquinas
fotográficas. Tal desenvolvimento tecnológico, inscreve a dimensão instantânea
no ato fotográfico, habilitando o registro do momento. Nesta mudança na
pragmática fotográfica, a emoção espontânea passa a ser valorizada pela idéia
do flagrante.
A pose, apesar de toda a agilização da fotografia, permanece como
elemento constitutivo da hierarquia de sentido na representação fotográfica.
Fotos de distinção, preparadas para servirem de emblema social, só poderiam ser
posadas.
Neste caso, a elouquência das imagens reinscrevem os ritos da vida
católica, como marcas de formação e identidade do grupo social. Atuam como
signos de pertencimento a uma certa comunidade de iguais. No circuito social da
imagem, ultrapassam a circulação restrita e ganham uma dimensão pública. A
crônica social das revistas ilustradas, colocadas à disposição, do mercado
editorial carioca, ao longo da primeira metade do século XX, veiculavam,
juntamente, com notas sobre o casamento ou batizado, dos filhos da elite
dominante, as fotografias tiradas por fotógrafos da melhor qualidade, especializados
em reportagens sociais. Desta forma as fotos de batizado, comunhão e casamento,
da alta burguesia carioca, veiculada pelas revistas ilustradas cariocas,
integram o catálogo de representações a serem internalizadas e como modelo a
ser seguido pelo conjunto da audiência das revistas. Mantêm, assim, os laços de
coesão do grupo social, garantindo, ao mesmo tempo, a construção da
representação hegemônica.
A sensibilidade religiosa, nesta dinâmica, é apropriada pelo significado
de distinção e de status atribuído às representações sociais, pela sociedade
burguesa.
Conclusão
A fotografia como representação que se fundamenta num ato, numa
pragmática, remete a análise dos processos de produção de sentido, por ela
veiculados, ao contexto de sua produção. Neste caso sua leitura é sempre
histórica. A dimensão da historicidade, reinscrita na mensagem fotográfica,
pela idéia de ato fundador, não só reabilita o sujeito como agente produtor de
sentido, como o identifica ao objeto fotografado, considerando ambos como
partes de uma mesma ação.
Desta forma fica, ao historiador,
sujeito de um outro tempo e agente de um novo sentido, o desafio de aperfeiçoar
sua capacidade em decifrar pistas, compreender indícios e avaliar sinais.
[1] Chartier, Roger. A
História Cultural: entre práticas e representações, Lisboa: Difel, 1989.
P.20
[2]Idem p.22.
[6] Bourdieu, Pierre.
Economia das trocas simbólicas, SP: Perspectiva, 1982. Introdução de Sérgio
Miceli, p.XLVII
[9] Ibid., p.77.
[10] Martin-Fugier, Anne. “Ritos da vida privada burguesa” IN:
Perrot, M.(org.) História da vida
privada, volume 4, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.248
[11] Ibid., p.250
[13] Texto
resultante da entrevista realizada com duas senhoras da mesma família que
vivenciaram, na mesma época ,os ritos da vida católica. Uma delas dona da
coleção de fotografias analisada por mim em outro trabalho: Sob o signo da imagem: a produção da
fotografia e o controle dos códigos de representação social pela classe dominante
na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XX”, Niterói, UFF,
PPGH, Tese de doutorado, 1990.
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